POEMA LONGO: CANTO II - OUTRO PASSADO...
CANTO II: OUTRO PASSADO...
A MENINA, MENINA AINDA...
Quando menina, menina ainda,
brincava na fazenda,
vestida de rendas, broqueis e bordados,
vestidinhos rodados de menina, menina!
Esperava o pai, na soleira da casa grande,
que retornaria com sua comitiva,
tocando o berrante, na sua chegada!
-O que eu sempre ansiosa, menina, menina festejava!
Menina, menina, na escola de freiras,
fazia brincadeiras, com as outras meninas...
Deixava loucas, a madre superiora,
a irmã Maria e a irmã Margarida!
Menina, menina ainda, flor em botão...
Vi e nem vi, o carro que vinha em nossa direção...
Rodopiamos, como o carro, rodopiava,
E tudo enfim girava qual pião!
Só se lembra de um lado,
a irmã Maria, toda quebrada,
do outro a irmã Margarida,
uma flor despetalada!
Estava tão moída a coitada,
que não sei se me ouviu o grito,
em meio aos meus gemidos:
Irmã Margarida, irmã Margarida, não morre não!
Menina, menina ainda,
com as pernas paralisadas,
fazia do leito a minha morada,
pois nele dormia o sono da morte, em vida!
Daquelas noites e dias, falo hoje,
como histórias a mim contadas...
Por aqueles que estiveram ao meu lado,
esperando ver-me acordada!
Meu pai boiadeiro,
desde o acontecido, não tinha mais saído,
com sua comitiva pelas estradas,
levando a sua boiada!
Nem tocava o seu berrante de chifre polido,
havia emudecido entristecido,
pela minha vida, em cuja sina,
menina, menina ainda, hibernava!
O próprio tempo nem tinha mais sentido!
Tudo parecia que desandava...
O pai boiadeiro o berrante nem tocava,
a mãe padecendo a seu lado, definhava!
Até o tio de Exú havia mudado;
homem cru, rude, macho, havia chorado,
ao Padrinho Cícero, houve por bem, de fazer promessa,
para que meu sono houvesse terminado!
Até o pai, boiadeiro, com certa pressa,
de que minha vida acordasse,
ficou de joelhos rezando o terço, com as mãos tremulas,
rudes e gastas, por dias e noites diversas...
Pedia ao céu a graça, de que minha vida acordasse...
Com a voz rouca, contrita, pediu, rogou, implorou
á Deus e á Virgem Maria que a mim vissem,
acudissem e salvasse!
Eu, a sua menina, menina ainda,
a sua coqui, a sua coquita,
que de tanto bem que me queria,
rogava ao céu, que para o céu não me levasse!
Ouvi dizer, tempos depois e cri,
que Deus existe que existe a Virgem Maria...
Que ouviram tanto rogo, tanta prece, tanta promessa,
dessas que toda a gente que ama promete,
da pionada da fazenda, do povo, que conhece,
da turma da escola, que convive,
do tio de Exú, no pé do Padim Cícero, que se comove
do boiadeiro rude, que se desespera da mãe que se acaba
mas na esperança persevera!
Que num dia com hora incerta, que do passado me abraça,
eu menina, menina ainda, numa voz miudinha,
disse meio que sonolenta e desperta:
-Estou com fome!... O que se passa?... Que caras são essas?
E ai nem havia pai, nem homem, boiadeiro velho experimentado,
só havia ante meus olhinhos assustados,
junto da mãe que parecia remoçado,
um par de braços fortes e largos, enlaçando o meu corpo...
Um corpo de menina, menina ainda,
todo banhado, por inteiro,
com as lágrimas do pai amado,
e da mãe adorada!
Menina, menina ainda, passei a brincar de médico,
por dias, por semanas, por meses, por anos...
Fui sempre a paciente, impaciente!
Desperta a mente, mas com as pernas que dormiam!
Consciente e desperta num corpo paralisado,
eu percebi que na minha face havia outra face,
e outra boca era minha boca...
Fizeram-me outra com o que tinha restado!
Deitada, meus braços inquietos
brigavam com os meus restos,
as pernas... Hibernantes pernas,
que ainda não tinham despertado!
E foram tantos médicos,
Tantas enfermeiras, com agulhas e remédios,
Tantos cuidados, que se esgotaram todos os recursos...
Só um milagre me faria normal de novo!
Só Deus poria de pé esta pobre,
Diziam todos, os de fé e os desconsolados...
Fui então levada, á uma igreja grande,
Aquela da santa, que pescadores havia pescado!
E os rogos, a reza, foram tantos,
Parecendo tropel de cavalos em direção á santa,
Que a missa parecia festa, de todos e tantos,
Uma mesma ladainha entoando!
A voz, o pai boiadeiro, tinha engolido,
A da mãe tornada brados se havia cansado,
Somente as vozes de seus corações ainda ecoavam,
Mesclando-se condoídas ás dos romeiros a seu lado!
Com a intermediação de Nossa Senhora,
Aos ouvidos de Deus Pai, Filho, Espírito Santo foi elevada,
O pedido para a minha melhora...
Àquela Santa negra, que como peixe fora pescada!
E não é que a voz do coração pode ser ouvida?
Eu menina, menina ainda, recebi uma graça!
Dali a alguns dias, dias de horas esperançosas
Minhas pernas, sem graça, do nada, estavam acordadas...
E toda aquela platina, que em mim fora implantada,
Que não tinha me posto em pé,
Foi à mesma que houve de colocar-me andarilha,
Nas estradas, do resto de minha vida, que faltava...
E só as preces, que é o que não é,
A fé que é mais do que aparenta,
Puderam acordar as minhas pernas sonolentas,
E levarem a menina, menina ainda, a ficar em pé!
Hoje de tudo se lembra,
Menina, menina tornada mulher...
Com uma lágrima nos olhos, um aperto na garganta,
No coração, na mente e na alma, a certeza na fé!