Maria Mortalha
Maria Mortalha
Maria da Graça Almeida
Cedo, deitou-se Maria, pronta pra logo morrer,
vestindo a alva mortalha, sem medo de adormecer.
Os olhos, tanto mais fundos, coroados por olheiras,
cerravam-se moribundos, nessa hora derradeira.
Implorando-lhe ajuda, veio um moleque qualquer
- Vó, apanha uma agulha, tira-me o bicho do pé!
Servil, levanta a Maria, desvestindo a alva mortalha
e já mais morta que viva o bicho do pé estraçalha.
Volta, esvaída, Maria para o bom leito de morte,
quando lhe chega a nora , chorando a fome e a sorte.
Maria, do quarto, dormente, sai e aquece o fogão,
serve-lhe o leite fervente e duros nacos de pão.
Com a fome, então, saciada e o corpo fortalecido,
parte a jovem senhora com olhos agradecidos.
Maria assim, novamente, põe-se no leito de palha,
julgando que certamente não mais tiraria a mortalha.
E eis que lhe chega a vizinha com um pote tosco à mão.
Queria do sal só um pouco que lhe salgasse o feijão.
Maria deixa o leito... que a Morte espere um instante...
pra atender a boa vizinha, ergueu-se mesmo ofegante.
Bem cheio o pote de sal, a dona vai-se embora.
Maria já fria descora e aguarda da Morte a hora.
A Morte, que vinha chegando, notou-a em pele ardente,
porém, percebeu que a lida tornara Maria valente.
Vendo a mulher à espera, recolhida em seu leito,
ordena que se levante e atenda-a com medo no peito.
Maria coloca, surpresa, os olhos esbugalhados
sobre as vestes que a Morte trazia em trapos rotos, rasgados.
A Morte impõe, soberana: - Sobreviva só mais um dia,
ainda que condenada, cosa-me a capa, Maria!
E apontando-lhe as entranhas, ressecadas e vazias,
exige-lhe que ao fogo torne o leite que frio jazia.
Maria salta do leito, arranca a tal da mortalha
e sem mesura ou respeito, rebelde, à Morte detalha:
- Em face dos desmandos alheios,
viverei mais um ano e meio.
Maria da Graça Almeida/2001
texto publicado na Antologia Prêmio Cultura Nacional