Sem parar

Mas nós todos trabalhamos...

é... quando chove, nós trabalhamos;

não, não podemos parar para ouvir,

para ver os pingos nos vidros das janelas.

Quando nosso cachorro late e abana o rabo,

nós trabalhamos;

não, não podemos brincar com ele.

E mais um dia todos, todos nós trabalhamos...

e quando nossas mães pediram um beijo,

nós saimos para trabalhar (de novo);

não, não havia tempo para elas,

nunca há.

Então nossos filhos vieram mostrar um desenho,

mas, como trabalhamos demais,

deixamos as figuras amarelarem,

deixamos os traços envelhecerem sobre a mesa;

é!... claro que não! não havia tempo,

não havia mais tempo para ser criança...

eles ficaram esquecidos.

E também trabalhamos...

mas nós todos trabalhamos

e havia um dia lindo de sol lá fora;

não, nós não pudemos sair da sala,

não nos arriscamos a sair da cela;

ficamos frios demais,

apodrecemos cedo demais...

mas não era tudo...

havia, ainda, nossa semente.

Mas ela também nasceu podre;

não, nós trabalhamos sempre,

não tivemos tempo de regá-la.

Mas nós todos trabalhamos...

e quando chamo você, amigo;

não, você não pode vir,

nem ao menos pode me receber em sua casa...

não posso ver seus sorrisos,

você não pode ver o meu choro.

É que nós trabalhamos demais, sabe...

não, não sabe!

não há tempo para saber...

E era uma noite fria,

alguém chorava de barriga vazia...

mas, não... não havia solução para ela,

você olhava, todos olhavam-na da janela;

não havia trabalho para aquela?

Eu mesmo trabalho,

e se algum poema me vem... já sabes!

não, não há tempo para cantá-lo,

não há espaço na agenda para concebê-lo;

então eu pergunto ao vento desse ar poluído:

quantas as coisas que nem vi?

quantas as vezes que nem senti?

quantos amigos eu já perdi?

quais os motivos para ser assim?

qual a solução para isso aqui?

Mas o vento também faz hora extra

tentando sobreviver.

Então eu pergunto a você...