Amor - Estações

Prelúdio

Estou sobre uma ponte.

Olho para baixo e vejo que a escuridão

Do abismo à minha frente

convida-me a fazer parte dele.

A sereia negra da morte entoa

O seu Irresistível canto sedutor.

O canto, pairando agudo pelo ar,

Continua através dos minutos,

Insistentemente.

Envolvendo os vales, buscando até mesmo

Os picos das montanhas, elas que também

Lutam contra o assédio da morte - que advém necessariamente -

Para continuarem imperturbáveis ante o hino pungente.

I

Penso, então: “Bastaria um salto, sem muito esforço,

E eu me despreenderia, livre,

Flutuando até chegar ao destino inexorável

De todo o vivente.

Num gesto alucinado, grave,

Último recurso premente,

Arranco os próprios ouvidos

E atiro-os ao vale , em sacrifício,

E fico, pelo compromisso que tenho com a vida,

À beira da ponte parado,

Dedos tocando o corrimão, levemente,

Olhando no fundo abissal, o nada,

Contando, impassível, como se fossem os indiferentes anos que já vivi,

As gotas de sangue que escorrem

E de mim partem, definitivamente.

II

Viver é suportar-se numa ponte, rangente.

É esperar que a ponte caia, inevitavelmente.

E é, ao mesmo tempo, cair desejando que ela não caia.

É sentir em cada movimento

De tudo o quanto existe a impulsividade do tempo,

Agindo, abarcando a vida, preciptando

A destrutividade fatal do combate,

e dizendo: - "a vida, poeta, é uma morte lenta, e mais

Morte que se perpetua pelo desejo

Que temos de não deixa - lá perpetuar-se ".

III

Não me matando num instante,

Mato-me cotidianamente.

Encarcerando-me na vida,

Ressurgindo das eternas cinzas da existência,

Enfeitando com alegorias supérfluas

E esquisitas a sua inapagável dor,

vou por esse vale de lágrimas vivendo.

Quão presumível tornou-se

todo o sublime do nosso tempo!

Quão previsível a hipocrisia!

Quão medíocre a Modernidade!

Quão enfadonho tornou-se tolerar

Os aviadores de receitas atuais!

No que se transforma a vida

Depois de algum tempo?

O que fazemos de nós mesmos

Depois de algum tempo?

Traímo-nos e conosco,

Traímos todas as flores do jardim.

Viver: levantar pelas tenebrosas manhãs

E sair para o trabalho dormindo.

Depois, pela tarde, ainda dormindo,

Sair do trabalho e acordar para os Sonhos,

Para uma vida que se esvai feito fumaça

Num crepúsculo resplandecente.

Viver: crescer guardando da infância as cores,

As fantasias que se perderam

E que não voltarão nunca, nunca mais.

Viver: "criar filhos", "colher flores", "comer carnes"

Com os supostos amigos.

Supostos, lógicamente, porque amigos

Verdadeiros mesmo, estes não os há.

Viver: colecionar amores explícitos ou paixões

Secretas, secretas principalmente.

Fazer dívidas e analisar extratos bancários,

Atualizar-se com notícias diárias

E muito pouco importantes.

Viver : acorrentar a loucura de tudo isto

Sob o paletó de uma pretensa normalidade.

Enfeitar com a gravata uma casca

Que Resseca e estala e que quase arrebenta

Sob a pressão de uma estúpida interioridade

Que não pode jamais arrebentar.

Viver: trocar os cadeados regularmente

Por outros que sejam cada vez mais fortes,

Mais convincentes, antevendo e aguardando

Em que tudo isso um dia vá,

Ante a obesidade do espírito,

Explodir num tumor maligno ou

Num ataque fatídico do coração.

Viver: evitar os espelhos,

Adiando o momento

Em que ele nos dirá as verdades

Que já sabemos mas, que não queremos ouvir.

Viver : dormir e nada mais.

Existindo numa grande cidade ou até mesmo

Fugindo para o campo,

Constatamos que tudo se torna

cada vez menor por dentro de nós

À medida que tudo se torna

Cada vez maior por fora de nós.

Somos todos o resultado

da proporção inversa de tudo

O quanto existe e cresce e,

Nesse torvelinho fatídico,

Empilha sobre nós os detritos de estar crescendo.

IV

O que estará pensando a moça

De camisa verde e calça preta

Que vejo sentada à minha frente, no metrô?

Estará sonhando, assim,

Tão absorta no infinito,

Os sonhos que não sou mais capaz de sonhar?

Ou estará, como eu, sem farmácia,

Fazendo o balanço e a contabilidade dos seus desesperos?

Esforço-me para me mexer e buscar os seus olhos.

Meu olhar alça um pesado vôo

à procura dos seus.

Bate asas aflitos como se pudessem

Pousar ali e ler, naquele lago,

Toda a verdade deste ser que desconheço

Mas que se torna, de repente,

Tão importante para mim pela coincidência ( feliz ? )

De estar comigo participando

Desta existência na humanidade.

Seus olhos estão distantes, serenos, porém firmes,

Contudo Não falam de qualquer verdade,

Mas não traem a esperança contida

Que carregam e o desejo de tudo poderem alcançar.

A moça é jovem ainda e, com certeza, estará

Vislumbrando no seu sonho de criança,

Sem medo e sem dor,

As cores cristalinas do arco -Íris de sua vida futura.

Reconheço na pele brilhante,

No olhar reto e seguro,

Na altivez de espírito,

A viçosidade desses desejos,

Os mesmos que tive num dia: " Casar...", "ter filhos...",

"Trabalhar...", "ser feliz...".

A moça ainda não vê, através da máscara,

A ponte como ponte, Imagina-a, antes,

Como uma rocha sólida, fiel alicerce dos seus castelos,

Como terra firme que não abriga, ainda,

Qualquer insuspeitável fissura.

Não reconhece o abismo

Que vagarosamente se insinua

E se solidifica sob os seus pés,

Sob aquilo a que um dia será obrigada a chamar de a sua ponte.

V

O trem para numa estação qualquer.

As portas se abrem e a moça se vai,

Arrastando, sem perceber, as correntes pesadas

Que a prendem à realidade vigente daquela estação.

Vejo-a ainda subindo as escadas,

Sem olhar para trás ( porque olharia ? ).

O meu trem parte.

Eu, por ora, ficarei por aqui

Quieto, moluscamente, nesse banco,

Procurando não fazer barulho -

Qualquer movimento que me desperte

desta viagem por decreto.

Mexerei-me um pouco, e obrigatoriamente, só na última estação.

VI

A minha noite é fria

E o som dos metais presos aos meus pés

Podem despertar-me dessa interminável sonolência.

Viro-me para um lado apoiando a cabeça

E procuro não pensar em mais nada.

A noite é fria e o Deserto cresce. Ai de quem abriga Desertos!

Pessoas sobem e descem a cada estação:

Pensativas, indiferentes, com suas certezas,

Enfim... Pela janela passa

Tudo o que tem que passar.

Eu, sem sobressaltos,

chegarei onde tenho que chegar...

Temos todos ainda, muito o que desaprender.”

Abenon Menegassi