Aos sobreviventes, os espólios
Este é só um desabafo
Enquanto minha psicóloga está viajando
Queria tirá-lo do meu peito, ainda fresco
Porque não tenho certeza de como estou aguentando
Já faz mais de dois anos
E ainda dói que dilacera
Entre portas fechadas eu rezo
Pra que ela esteja à minha espera
Ao acordar hoje cedo, qual não foi minha surpresa
Passado e presente se mesclavam num emaranhado de poder sem igual
Ao ver as coisas da minha avó espalhadas pela casa
Senti um horror inimaginável, atemporal
São tantas as lembranças que esses objetos me trazem
Armários e prateleiras, sofás e cadeiras, colchões e fogão
Onde ela se deitava, se sentava, repousava e cozinhava
A mesa onde ela recolhia os grãos de feijão
Apesar da minha profissão, deixei minhas unhas crescerem
Para se equiparar às dela
Mas as pinto de negro em vez de vermelho
Ao invés de acender uma vela
Comprei seu creme de pele para sentir seu cheiro
Uso seu relógio de punho quebrado no braço
A sua revelia alisei meus cabelos
Pra ficar perto dela mais um passo
Por todo canto onde eu olho,
Só me brotam memórias
Da maldita rede da varanda
Em que me balancei noites afora
Os quadros da parede não estão em seus devidos lugares
Graças a Deus que a estante da TV não coube no caminhão
Os móveis dispersos pelas salas me provocam tremores no peito
O tapete combinado com a poltrona é minha prisão
Há espelhos por toda parte
Roubarei um para pôr no meu quarto
Colocá-lo-ei acima da cômoda onde ela o acomodava
Qualquer deslize e eu o parto
Dos grandes aos pequenos
Vou vendo os acanhados detalhes
Portas treco e abajures, descansos de copos e talheres
Me escondo no quarto em busca de novos ares
Passarei o dia trancafiada nessas cinco paredes
Foi o suficiente sair para comer
Deparando-me com o que não havia visto antes
Móveis imóveis esperando para me receber
Aos sobreviventes, os espólios
De uma batalha perdida contra o câncer
Não há louvor ou rastros de glória
Me jogo na cama que um dia fora dela, meu último lance.