ELE REZAVA CONTANDO ATÉ VINTE.

Ele rezava de um jeito todo especial,

só dele, só dele, só dele,

era um segredo que guardava só pra si, e pra mais ninguém.

Enquanto todos tentavam arranhar as costas de Deus,

enquanto todos faziam o possível para purgar seus desvios,

enquanto todos teimavam galgar o que a razão ainda não fecundou,

ele fazia diferente, bem diferente, intensamente diferente.

Ele rezava só contando até vinte,

de um a vinte ele cumpria sua sina sem medo,

de um a vinte ele esculpia seu lastro com maestria divina.

Quem o via traduzindo sua fé com essa ladainha,

como um beato entalhando seus mistérios,

poderia até pensar que era peça do seu jogo,

puro engano.

Mas era ilusão, ele não rezava, só contava,

de um a vinte, somente de um a vinte.

Ao final, abria os olhos como se saísse do transe,

como se emergisse de si mesmo para própria vida.

Assim ele cumpria sua tarefa de responder ao mandamento,

assim ele agradava quem estivesse à vista,

assim ele fazia o que teria que fazer,

só que fazia do seu jeito, e assim ficava feliz.

Se Deus existe e a tudo assiste,

quando o via rezando assim talvez se perceba muito distante,

ou talvez se perceba perto como nunca esteve antes com alguém nesse mundo, ou em qualquer outro mundo.

Porque ele, na sua contagem de um a vinte, acredite,

certamente estava sendo honesto bem mais pleno do que seus demais,

certamente estava estalando sua fé como ninguém mais nessa terra

poderia ousar, poderia dissimular, poderia encenar.

E assim foi crescendo, crescendo, até o tempo se cansar de deixar suas vértebras em riste.

Até o momento em que seu tempo pediu trégua.

E quando, por fim, for bater à porta do divino,

disso ninguém conseguirá escapulir, por mais que teime,

por mais que tente, por mais que insista em fugir de cena,

por mais que resista em não baixar seu pano.

Deus irá com certeza parar seus afazeres tantos só pra dar boas vindas,

afinal aquele filho que tinha trocado seu molde, tinha escolhido um caminho que era só seu, de ninguém mais.

Então os dois se sentarão à beira de algum lugar, sabe lá qual seria, não importa, não importa mesmo.

E assim juntos fecharão seus olhos, respirarão fundo por algumas vezes com a calma que nunca tiveram, nunca tiveram mesmo.

E então, irmanados no mesmo ventre, farão o o que deveria ser feito:

contarão juntos de um a vinte, uma única vez de um a dez.

Assim o dia e a noite poderão, por fim, dormir de uma vez. Amém.

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Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 30/07/2011
Reeditado em 31/07/2011
Código do texto: T3127833
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