ODE A UM REI MORTO

Na última vez que te chamei
tu não estavas.
Disseram-me que andavas a colher flores
pelos jardins do Céu.
E eu tive medo, tive raiva
e fiquei triste pela tua ausência.

Na última vez que te chamei
as mães desapareciam de fome
dando comida a seus filhos.
Homens perdiam-se pelas ruas
drogados e famintos de afeto.
A barata encontrava dificuldade para andar
entre os cabelos encaracolados
do menino morto na favela.
E tu?
Tu andavas pelo Céu a colher flores.

Na última vez que te chamei
subira a cotação do dolar,
vidrara o olhar do amante,
secara a rosa de plástico.

Na última vez que te chamei
uma mulher dera à luz um filho sem membros,
já não havia a estátua do Cristo Redentor
e, na Amazônia,
só havia gás carbônico no ar.

Na última vez que te chamei
minha voz não estava rouca,
havia cabelos em minha cabeça
e meus filhos ainda enxergavam.

Na última vez que te chamei
tu andavas pelo Céu a colher flores
e as mãos dos homens que plantaram as flores
já não tinham dedos
e não havia joelhos
que se dobrassem à tua imagem
e não havia olhos
a admirar teu esplendor.

Na última vez que te chamei foi assim.
E assim foi a última vez que eu te chamei.
Nelson Eduardo Klafke
Enviado por Nelson Eduardo Klafke em 29/07/2011
Reeditado em 17/04/2020
Código do texto: T3127263
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.