CANÇÃO DO VIVER
Tenho andado distante de mim
como uma sombra
como quem busca o nada
no percurso da estrada
e no peito esta opressão
onde não escuto sequer
o pulsar do coração.
Tenho andado perplexo
tentando encontrar, nesse estado,
ao menos elo e nexo.
Tenho, sonambulantemente,
sonhado encurtar distâncias
e os metros, quilômetros,
vão crescendo indefinidamente.
Pudesse o poder do sonho
materializar a imagem, e assim,
enxergar meu rosto e o teu
no espelho de todas as manhãs.
Tenho andado, é verdade,
como o círio nas igrejas,
queimando até o desaparecimento,
quase sem resíduos,
entre cânticos e rezas.
Pudesse eu cantar a purificação do corpo
e dizer que a saudade tem um nome,
branca e virginal Amada,
como os lírios do campo,
e o seu sorriso tem tanto encanto,
que minhas nervosas mãos
não conseguem acalanto.
Tenho convivido com uma amargura
que não é minha
e já lhe dei alcunhas, apelidos,
reticências e afagos:
ah, essa dor da ausência!
E as horas são fusos difusos
de imensa tristeza,
em caminhos paralelos e
trôpegos cansaços.
Sobra a alegria que me veio
nas palavras da Amada,
o palpitar dos seios,
o seu corpo, fruta madura.
E em mim ressoa
a exata dimensão do homem:
dia de vestir a roupa de viver,
o outro dia,
o da descoberta
do epicentro amargo da solidão.
– Do livro MODERNIDADE POÉTICA NO RIO GRANDE DO SUL. Porto Alegre: Caravela/Instituto Cultural Português, 1984, p. 42:3.
http://www.recantodasletras.com.br/poesias/308139