Abençoada fadiga
Quem fui (se fui) como posso decifrar?
Como prenunciaria por onde vagueei?
O que de si brotou a terra há de salvar
Pois na fonte em que nasci não morrerei!
Como enxurrada o esgoto visitei,
Seu fel assimilei e na lama me envolvi.
Distante a transparência que sonhei
Na fonte protegida em que nasci.
Despejos, restos frescos e putrefeitos
Frascos rotos de cacos pontiagudos
Em locas rasas e em profundos leitos
Dos dejetos nomeei aliados e escudos
Em queda livre e vertiginoso curso
Fendas, rochas e cascalhos me esfolando
Em cada curva ou cachoeira do percurso
Surpreso vi os rejeitos me deixando.
Desfeitos tantos fios e tantas fendas
Sentindo acariciar-me o azul e o vento
Reflete enfim o sol minhas contendas
Já não julgo tão nefasto o sofrimento
Quem fui como rever memória amiga,
Como chorar a deserção em noite nua?
Abençoado cada nó dessa fadiga
Que na foz me dá o mar ao véu da lua.