Diálogo
_E então minha criança conta-me o que aconteceu sem esquecer
Vírgulas, pontos, e tudo mais o que coube nessa história estranha
Não omitas uma única palavra para poupar meus nobres ouvidos
Que do mundo pouco ouviu e que com qualquer ladainha se engana.
_E porque crês tu minha nobre senhora, que essa pobre criatura
Tem algo a contar que valha a pena seus delicados ouvidos escutar,
Sem, no entanto, se ferir ou perder para sempre sua inocência?
Sou apenas uma reles criatura sem pudor ou atos dignos de narrar.
_Por que te calas minha fiel companheira, sem nada me dizer ou explicar,
Não sabes tu que entre todas as minhas escravas és a única a me ouvir
Falar das minhas dores e angústias sempre presa nesse paraíso de gelo
E, entretanto, te calas e só ouve minhas queixas sem se expressar por fim.
_Quisera eu ter algo bom e interessante para contar a ti minha nobre senhora
Entretanto tudo o que vivo fora desse palácio que tanto abominas
Não deve ser dito, relembrado ou registrado de qualquer maneira
O que vivo lá fora é de certa crueldade que falar sobre não me anima.
_Mas como posso eu conhecer o mal se nunca tenho a chance de ouvi-lo
Terei que rasgar minhas vestes e me sujar de lama para saber que ela fede?
Tenha compaixão dessa tua senhora que nada teve a oportunidade de ver
E narra sobre o que se passa lá fora, não deixe que minha ignorância me cegue.
_Tu tens o que sempre sonhei e, no entanto, estás sempre enfadada com tudo
Queres conhecer e se juntar ao nada do qual tento desesperadamente fugir
Não percebes que daria minha vida para não conhecer o que se passa no mundo
Para não sentir o cheiro da guerra e esquecer o gosto horrível da fome que senti?!
_Ouvindo tua fala percebo o quanto pareço egoísta e mal agradecida
Pela sorte que a vida, de bom grado, fez questão de ofertar a mim
Mas não percebes que sou como o cego que tem olhos e não pode ver
Como o paralítico que tem pernas que nunca hão de lhe servir?
Sou inútil e isso tira o sabor de tudo de bom que tenho para provar.
Como discernir o que é bom se não sei aquilo que chamam de ruim,
Como valorizar o manjar que me serve se nunca provei outra coisa?
A riqueza não tem sabor quando não se tem liberdade para usufruir.
_Queres me convencer, sinhá, que tu ao viver no luxo sem se sujar
Não tens o prazer que terias se vivesse com algo a lhe preocupar?
Queres tu sentir através das minhas historias o que sinto ao vivê-las?
Saibas que o sol arde mais para aqueles que não têm onde se abrigar.
_Acreditas tu que eu choro de barriga cheia e nada do que disser irá mudar
Porque para quem nunca viveu numa prisão não sabe julgar o que se passa.
Pensas que porque tenho tudo de material que querias não posso me queixar
Mas não sabes tu o que é ver nascer e se por o sol atrás de uma grade trancada.
_Verdade, sempre pude me mover por onde quis e fazer o que me apetece
Não preciso de permissão para falar com alguém ou fazer um novo amigo.
Ao ouvir tuas queixas e analisar a tua fala posso perceber agora o teu pesar
E realmente fica claro: há mais dor no teu sorriso que no meu grito.