O Passado a Limpo - um texto de André Bessa

Registro aqui o texto "O Passado a Limpo", com autorização do autor, André Bessa. Gravei o áudio para o André e ele me autorizou a publicar aqui no Recanto. Segue o link do áudio:

http://www.recantodasletras.com.br/audios/poesias/41203

Abaixo, o poema:

O PASSADO A LIMPO

(poema em eneassílabos com acentuação alternada)

Autor: André Bessa

I.

Não, nada nenhum foi esquecido

do que li no livro do teu rosto.

O silencio sujo ali exposto,

entre as letras tortas da expressão,

foi um desenganado pedido

– imprevisto jorro de andorinhas –

que se esfiapou nas entrelinhas

e se desfez, sem explicação.

Nem tampouco esqueci da manhã

em que as naus se fizeram ao mar ;

do berro insano da cortesã,

errando na praia a gritar

às velas brancas que se afastaram,

os fiapos da esperança vã

que não poderia mais içar.

Nem das estrelas que despencaram

feito dardos duros, e fincaram

pesadas grades em meu olhar.

Nem do mergulho que se seguiu,

em tardes profundas, abissais,

a descida aos meus dias iguais,

onde cada olhar foi doloroso

em cada das peças que despiu ;

foi aço frio que retalhou

uma sã nudez e a transformou

em grito louco e silencioso.

Não, como esquecer das cicatrizes

inscritas nas entranhas, na pele,

na carne do tronco, nas raízes,

dores que hoje a memória repele,

mas que foram um hausto de ar vital

a quem, na sua morte abissal,

sentiu-as vir em força primal

no murro que à vida nos impele.

Só quando a página foi virada,

e que a tarde fechou suas portas,

foi do desfilar das horas mortas

em desesperada procissão,

que a dor da lembrança, tatuada

no manuscrito de cada dia,

fez-se inventário da agonia

de todas as mortes da ilusão.

II.

Quando será que apodrece um fruto ?

existirá um momento exato,

assim como a data de um contrato,

ou o ponto final em uma carta ?

haverá um morrer absoluto,

como uma vida morre e outra faz-se,

ou será que a borboleta nasce

à morte gradual da lagarta ?

III.

No livro que colei aos pedaços,

hoje leio a história que sobrou

dos êrros onde deixei meus passos,

êrros que nem o tempo explicou.

Dos verdes anos que foram os nossos,

só restam folhas secas, caroços;

mesmo a dor, remoída nos ossos,

essa, dentro dos ossos secou.