ANOREXIA & TIROS

Diante do público,
no palco,
os atores encenam
a tragédia do dia.
À direita do palco,
o rapaz pobre, moreno;
à esquerda,
a bela menina 
de tristes olhos verdes.
No texto,
a revelação de seus sonhos,
seus ideais e quereres.
Ele é da periferia,
ela é de um bairro popular.
Ele mal passou da sexta série,
ela terminou o segundo grau.

E ambos não se conhecem.
Nunca nem sequer cruzaram
o caminho um do outro.
Mas hoje estão enterrados
no cemitério do descaso,
vítimas das mentiras
de um tempo sem perdão.
Ele levou sete tiros,
ela ficou muitos dias
sem comer direito.
Ele nunca quis, mas
passou muita fome.
Ela teve de passar fome,
ela achava que devia
passar fome,
emagrecer,
seguindo as exigências
do mercado,
esquelético charme.
Ele virou um, como se diz,
presunto,
carne dada aos vermes,
jogado e esquecido,
um número nas estatísticas.
Ela foi capa de revistas,
notícias na internet e jornais.
Ele foi uma nota
em um dos muitos programas
ditos policiais.

A morte os igualou.
O final da peça,
logo se vê, é triste
e catártico.
Veja as lágrimas dos espectadores:
triste menina,
morreu seca como uma rosa
esquecida em um livro!
Quanto ao rapaz,
já nasceu criminoso,
disse o delegado.

Todos os dias, a platéia se renova.
E a cada dia a peça
é um pouco diferente:
às vezes, a menina não morre,
mas vende a sua alma ao diabo,
e o menino vai para o presídio,
e vira bandido
na universidade do crime.

Seja como for,
é muito trágico,
catártico,
ver jovens tão belos
não alcançarem a paz.
Mas os jornais,
os noticiosos
e o povo gritam:
a vida é assim mesmo!