O renascimento de São Paulo de Piratininga (rascunho)

para Roberto Piva

A areia é cinza

O concreto e a poeira são soluções de vácuo e areia com densidades distintas.

A cidade respira e inala o ralo cimento.

Há em cada esquina e vigiam

Em fila índia e irritados os paladinos espessos:

Uma banca de jornais sem aberturas eternamente iluminada;

Uma esposa abandonada no altar por um polígamo impotente;

Um rato morto há mais de duas décadas

A que se não deu enterro digno;

O lábio molhado de uma adolescente que deixa um picolé derreter;

As doutrinas aristotélicas escritas em espelhos côncavos.

Existe uma chance grande

De estarmos repetindo os erros do passado,

Segundo um nobre poeta japonês. Mas como não entendemos japonês, continuaremos o curso normal de nossas pequenas vidas, sem interrupções de maior relevância. Babaremos quando o sono chegar, sonharemos com coisas que vimos durante o dia, enquanto as putas dão palestras noturnas aos deputados e estupram travesseiros.

Não entenderemos nunca o japonês, segundo a Lei nº 77.863 de 16 de maio de 2011, a qual acaba de ser aprovada por ampla maioria em nossa reputadíssima Assembléia.

Um homem ontem dizia frases sem sentido

E foi preso porque desconfiaram que fosse japonês e, portanto, ele não compreendia o que estava dizendo, segundo a referida lei.

Um ser humano não pode desperdiçar palavras em idioma desconhecido, reza a melhor doutrina constitucionalista da excelsa terra paulista, artigo 8º da lei supracitada, parágrafo único.

O Estado de São Paulo, como qualquer outro ente real, possui dois aspectos: horizontal e vertical. O horizonte é uma mistura de fumaça de cana-de-açúcar, edifícios, carvão vegetal e o pó narcotizante de cacau. O vertical é o limite extremo.

Há uma continuidade perturbadora entre as barbas dos mendigos e a lembrança de Tolstói em São Paulo.

Poesia:

Lá nasce, onde a ribeira jaz morta,

Uma coorte, uma vila e uma classe.

E o céu de gaze, grisalho, já aborta

Sem sorte, chuvisco fino, sem face.

No passe do descompasso, o sporte

De viver da arte stúpida do disfarce,

Da farsa: os homens tem por orto

Onde o desastre, homens de Marte.

E sem guerra de guerreiros, matam,

Em covardes se fogem e se’ncerram,

Aqui onde a cidade é qualquer vila.

Temem perder-se no nada, na vida,

Onde a cidade é sombra, pó, asfixia,

E sem guerra de guerreiros, matam.

E sem guerra de guerreiros, guerram.

Prosa:

A administração carcerária do Estado amplia seus tentáculos com prédio cada vez mais seguros e isolados. O isolamento garante o império de uma normatividade excepcional dentro das instituições. A segurança garante que a sociedade civil não vai incomodar os habitantes do panóptico piratiningano. A própria existência dessas instituições de exceção à liberdade não é vista como problemática para a reprodução da sociedade, porque o modo de vida piratiningano adota como paradigma de cidadania a segurança, não a liberdade, e vive tão isento do ônus da liberdade, quanto seus congêneres encarcerados.

A liberdade nestas terras é combatida por uma ideologia difusa e tímida de indiferença e utilitarismo. Entre a realidade, que se reorganiza por valências de utilidade privada e de segurança para todas as utilidades adjacentes ao indivíduo, e a utopia, que se reduz à maximização da utilidade apropriável pelo homem singular e a apropriação sem limites de novas utilidades, o piratiningano exprime em arquitetura, discursos e atitudes o único desejo escatológico que para si é de fato problemático: o desejo de segurança.

É todo um modo de vida que exclui a liberdade por definição. Vejam o comportamento das instituições concentradoras da violência - polícias, exército - e da disciplina - prisões, escolas, hospitais - para saber que esse país - São Paulo, que é o pouco do que conheço - é um país frouxo nas instituições que reproduzem e mantem nosso nível vital de humanidade; mas é um país perfeitamente preste a fazer tudo ruir diante da segurança.

Poesia:

o mar não existe nos teus olhos, Soraia,

que são negrores de doze nectarinas,

e teu silêncio não soa a conchinhas,

tua saliva não quebra na minha praia.

Tua simetria, tua silhueta não calham,

tuas nádegas são suaves, pequeninas,

E esta tua preguiça, gigante e felina:

Sim! A perfeição humana tem falhas.

Somos todos da mesma cepa e plano,

apesar de meio estéreis, filhos d'asnos,

apesar de indiferentes, como os anos

apesar d'impulsivos, como o nojo e o asco.

Soraia é perfeita e errada: paulistana!

Só os burros sabem como teimo tanto.

Só mesmo'os burros sabem como a amo...

prosa:

Sorrir e chorar nesta cidade é mais importante do que escrever um livro;

Ajudar a esse homem nesta cidade é muito mais importante do que escrever um livro;

Dar dinheiro a essa mulher nesta cidade é muito mais importante do que escrever um livro;

Xingar meninos, espancá-los, dar-lhes o corretivo devido nesta cidade é muito mais importante do que escrever um livro;

Conduzir o carro o mais rápido ao seu destino, quase atropelar pedestres, quase atropelar os cães, quase atropelar os filhos nesta cidade é muito mais importante do que escrever um livro;

Descansar por horas, olhar o teto por dias, levar semanas para escolher o melhor lençól, o melhor colchão, o melhor sofá, o melhor travesseiro, a melhor almofada, o melhor cobertor, dar-se por satisfeito durante meses a fio com o que a vida reserva para si, sorrir e chorar, dar-se por satisfeito por anos a fio, ver tranqüilamente o passado diante dos olhos à hora extrema, dar-se por satifeito com o destino geral dos vizinhos, assegurar-se de que ninguém é melhor do que ninguém, sorrir e chorar para sentir o seu ser, sorrir e chorar para sentir-se bem, sorrir e chorar para ser feliz, dormir por décadas como um vegetal e acordar atrasado para o trabalho, subornar o policial, subornar pessoas na rua, subornar detetives, subornar políticos, subornar os fiscais, subornar os gatos, os pombos, os ratos, garantir a vitória final e o êxito pessoal de si, sorrir e chorar e dar-se por satisfeito enquanto espanca meninos e suborna mendigos, usar eventualmente álcool, cocaína, crack, heroína, maconha, ácido, óxi, ecstasy, cogumelos, cauim, santo daime, chá de cipó, chá de papoula, anis, rapé, giz, cheirar poeira, observar a poeira baixar, observar a poeira subir, observar a poeira se condensar e capturar os pulmões, o cérebro, a alma, descansar à hora extrema e sorrir com o passado diante da memória, onde se espanca meninos, mendigos, se queima dinheiro em frente à favelas, se suborna a poeira, sorrir e chorar nesta cidade é muito mais importante do que escrever um livro.

poesia:

Neusa, viver não compensa

é nadar no espesso'afogando,

olhar o Sol, quase doença,

eu preferia ficar me drogando...

Machuca estar na vida, densa

é a cicatriz se acumulando

sobre a tês, grossa e tensa;

eu preferia ficar me drogando...

Nem à dor o sorrir é ofensa

nenhum despudor nefando,

lascivo, despido de crença;

eu prefiria ficar me drogando...

O excesso, a falta, a dança

a dança dos dois, amando,

ilude, mas ninguém pensa:

"Eu prefiria ficar me drogando..."

Aos meninos na rua, Neusa,

sempre digo "Cheira!" quando

buscam em mim uma certeza;

Nesta cidade só de beiradas,

Nesta cidade, em suma, de pó,

Nesta cidade cinza e preconceituosa,

Eu prefiria ficar me drogando...

prosa:

Há dois dias sinto uma dor de dente que muito me lastima. Tenho metade do rosto latejando todo o dia, como se fora um sinal de trânsito "Homens Latejando". Meu maxilar está começando a inchar e meu vizinho já me perguntou se preciso de ajudo, é óbvio que não preciso de sua ajuda. Imagina, um senhor de meia idade, um fracassado, vendedor de sapatos, um pulha, vive trazendo prostitutas e outras serviçais para dentro de casa. Meu andar parece tremer quando ele as traz. Meu prédio parece latejar... Claro que preciso de um dentista, basta olhar meu maxilar, é óbvio que eu teria ido já a um, se eu tivesse dinheiro suficiente. Mas não vou pedir um empréstimo, nunca, controlo muito bem minhas finanças e dentro de três meses poderei visitar um dentista. Caso estejamos em um estágio avançado de destruição das raízes e nervos do dente, em seis meses poderei pagar uma operação. O porteiro, homem simpático e cuidadoso, me disse que posso procurar o sistema público, uma unidade básica de saúde, um hospital eventualmente. Outro conselho genial: posso sempre buscar ajuda no setor público, eu e os outros catorze milhões de doentes, enfermos, manetas, ceguetas, moucos, velhos ranhetas, cães raivosos, enfermeiras imunes a bactérias que destruiríam sozinhas dezoito nações indígenas, hanseníticos, usuários de cocaína. Meu rosto está começando a doer e meus molares estão ficando moles, eu já notei faz uns dois dias que eles estão moles. Eles estão muito moles e a gengiva está inchada. Meu professor telefonou hoje e me perguntou "Como está o dente?" eu respondi "Como o senhor sabe do meu dente, professor?!", como ele sabia, se o inchaço começou a dois dias, "Ora, como eu sei, você me falou dessa dor há quatro meses...", "Impossível, faz só dois dias que..." ele gargalhou do outro lado, senti-me ridículo mesmo, que memória essa minha, "Você precisa de dinheiro?" perguntou-me com bonomia, disse-lhe não, sem oferecer explicações e disse que não participaria mais dos seminários à Universidade porque estava muito ocupado com a tradução de Cioran. "Relaxa, rapaz, não há pressa, porque o editor disse que, de qualquer maneira, o livro só sairia ao próximo ano", "Sim, professor, mas eu dependo das traduções, quanto antes acabe essa, tanto antes arranjo outra" e uma dor cortou minha fala, como um sinal de que eu não precisava agüentar tanta bondade, como um daimôn socrático, eu precisava de dinheiro, eu tenho cá minha dignidade e não estou disposto a ser humilhado só porque me esqueço eventualmente de algo. Por alguns segundos hesitei com o telefone na mão, entre desligar ou não, ouvi levemente meu professor falar do outro lado - alô? Alô? - e agastado o desliguei. Dinheiro, é claro que eu preciso de dinheiro, e por que os molares valem tanto? Vou ao dentista, estou absolutamente decidido a ir ao dentista, todos sabem disso, todavia, preciso de mais dois ou três meses de reservas. Quem sabe se até lá o caso não se simplifique, e o dente desinche ou os perca de uma vez? Se isso ou aquilo ocorresse, poderia usar meu dinheiro para contratar uma faxineira por um mês. Se eu souber negociar os preços, ela poderia até passar minhas roupas, fazer café. Que maravilha! Uma mulher andando pela casa de novo. Não sei se meus dentes valem tanto quanto ver uma mulher passear pela sala mais uma vez... Meu professor tem dó de mim, eu sei. Quando tentei interferir no último debate que tivemos sobre minha tese, ele me atalhou paternal dizendo "Você anda sem tempo para seu texto, Ibrahim, o que está acontecendo?"; são as traduções, ele sabe disso, são as traduções. Quando é necessário fazer-se ouvir, o que ocorre? Traduz-se! É o que eu faço eu traduzo o tempo todo. O editor me liga e diz "Ibrahim, tenho um texto em francês daquele sociólogo, sobre a Questão Palestina, você consegue traduzir antes de sexta-feira?" Eu consigo, eu consigo mesmo, em se tratando de tradução, eu posso tudo. Penso algo, todavia não sei dizê-lo ou escrevê-lo, fico por horas olhando o computador, olhando a folha em branco, olho o céu, não posso escrever nada no céu... Aquela palavra em hebraico, como era?... O papai dizia... Ou era em iídiche? Arschloch! Não perco tempo refletindo sobre as frases que me faltam na tese, parto logo para as traduções. Meu professor não pode me ver com desdém, porque aprecia a extrema reverência que lhe dedico. Para ele é como manter um súdito, no sentido emocoinal, todo mundo sai ganhando. A secretaria do Departamento de Filosofia não sabe meu nome, apesar de eu ter lhe repetido diversas vezes "I-bra-rim", "I-bra-chim", "Eee-braa-eeeemmma". Ela não gosta de mim, me olha com desdém, nunca sei que palavra lhe dizer. traduzo um monte de coisas em suas malditas fauces, já nã sei se domino o português, que é minha língua natal, quero dizer, maternal. Então são as traduções que eu faço das coisas ditas por outras pessoas que me fazem perder tanto tempo, se é que você me entende. Empresto aqui uma expressão da oratória antiga, atribuída a Catão, que dizia "rem tene, verba sequentur". Ás vezes passo horas refletindo sobre esses chavões de oratória e não chego a qualquer conclusão. Meu professor não me odeia, porque eu sou uma pessoa muito dócil e leal. Na verdade não sei porque não me odeia... Na verdade não lembro quando meu dente começou a latejar, acho que foi ontem, anteontem, é até onde vai minha memória. Como se diz 'dente' em húngaro mesmo? Minha mãe não vai me ligar hoje. O editor precisa daquele texto antes que eu parta dessa para melhor... É óbvio que eu não tenho tempo para me dedicar à minha tese, se eu não estivesse traduzindo a pilha de textos que ele me envia a cada três semanas, porque ele é o professor mais produtivo da Universidade, o mérito é parcialmente meu. Nunca vou terminar minha tese. "Rem tene, verba sequentur", "rem tene, verba sequentur", e o inverso não seria original e igualmente verdadeiro? "Verba tene, res sequentur", sim! "Encontra uma idéia e as palavras seguirão" ou "encontra as palavras, as idéias seguir-se-ão"... Nossa, que original! Estou surpreso comigo mesmo. Não estarei traduzindo alguém? Esse pensamento me aflige muito. Sinto até uma pontada na nuca. Uma frase só para mim, nesta cidade, é como uma ilha paradisíaca. Sem fim.

Poesia:

Se não houvesse cinza,

não havia São Paulo

de Piratininga.

prosa:

Ontem esqueci de traduzir uma frase de um texto do "Spiegel", semanário alemão. Ausente a frase, o autor parecia defender a política de fechamento das fronteiras entre os países europeus, em franco ataque ao Acordo de Schengen. Não reli o texto, enviei-o sem reler, como sempre faço. Trata-se de uma prerrogativa minha a de terminar minha tarefa no calor do momento, como se fora uma obra de arte. Como se fora a última frase que eu escrevesse: "O Tratado de Schengen e os países signatários parecem diante do impasse [frase faltando "Um duro golpe no bloco europeu em geral, que se baseava entre outras coisas na livre circulação de pessoas, nos recuperaremos?] Esperemos que sim."

Meu editor achou o autor muito reacionário, disse-me Não publicarei, Ibra-him, nada contra teu trabalho, mas o cara espera que o Acordo seja destruído, entende?

Olhei o original, dei-me conta do erro imediatamente, mas como um daimôn novamente forcejasse por manter minha honra e dignidade, afastei o telefone do rosto e sussurrei Errei...

Desliguei o telefone e enviei um e-mail ao chefe dizendo: "Verifiquei o texto, o autor parece titubear. Acho melhor não publicar, mas se você não se importar, vou tentar vender o texto para a Folha de São Paulo, o Valor, a IstoÉ, o Diário ou o Estadão. Abraço, Ibrahim." Curto e simpático, como sempre, curto e sincero, curto e simples, como eu sou. Duas horas sentado no banheiro lendo enquanto cago não me parece algo exagerado, não. Exagerado é não ver nunca o Sol nascer, exagerado é não contemplar nunca a arquitetura na Rua São Bento ou Quinze de Novembro, excessivo é mijar na rua, cuspir na cara, arrotar à mesa. Ler o jornal e uma gramatiquinha de latim enquanto se defeca não pode ser anormal. "Ros-a, ros-am, ros-ae, ros-ae, ros-a, ros-ae, ros-as, ros-arum, ros-is, ros-is", decorar as coisas é tão gostoso, me sinto tão inteligente por saber a declinação de 'currus', 'manus', 'domus'. Isso sim é cultura! Quando o editor ligar, perguntarei se não precisamos traduzir algo de quente da imprensa vaticana, pois eu adoraria traduzir do latim notícias pegajosas sobre a vida amorosa dos nossos burocratas sagrados, já imaginou: "Padre Schmitt admite que ama os homens" ou "O Papa Bento XVI passa bem depois de breve desinteria". Eu me divertiria, nesta cidade, eu me divertia sozinho...

Prosa:

A organização superior da vida não pode ignorar todas as atitudes humanas consideradas malignas, no sentido mais naturalizante da moral. Não será possível inventar um futuro que somente conte com a solidariedade universal e a justiça real. Nem é a competição e o egoísmo as fontes exclusivas da maldade; nem é a cooperação e o altruísmo as fontes exclusivas da bondade. A organização superior da vida humana precisa refletir e propor um modo de produção e um padrão de relação de produção e uma forma de circulação da riqueza absolutamente compreensivas, se é certo que pelo menos uma das ideologias libertárias se baseia numa dialética real que tenta construir um termo de suprassunção, negando e afirmando um modo de conceber a realidade. Todavia aprendendo com as atitudes pre-existentes, torna-se mais do que um modo de ver - torna-se um modo de unificar e filtrar as atitudes humanas e um modo de reproduzir as atitudes novas. Essa organização nem reinvindica exclusivamente a plena racionalidade, senão num sentido tão ampliado que perderia o interesse filosófico; nem rejeita a razão, porque . Para que possa nascer uma nova forma de sociedade, é preciso que ela possa errar coletivamente, é preciso que ela ceda a obstáculos, porque são os obstáculos que demonstram a existência de um caminho a percorrer.

A organização superior da vida humana é socialista em todos os detalhes e comunista em seu horizonte. E ela pode cometer erros em suas teorias, assim como pode ceder diante dos obstáculos na realidade. Contudo, pode vencer seus obstáculos e corrigir suas análises nos detalhes. E corrigir suas atitudes no geral. Se essa filosofia da práxis não for uma ética também, não será nada.

Haverá no futuro essa organização superior e haverá crime, haverá traição, haverá plágio e haverá guerra, porém não serão nossos sonhos que falharão, porque os sonhos não falham: eles sempre nos mostrarão os empecilhos, como intuições, mas nem sempre na medida correta, como ilusões.

Prosa:

Não sei se meus dentes latejam mesmo. Procuro, isso sim, meu próprio mal. Ando atrás do meu próprio mal como quem procura algo que o unifique, aquilo por força do que fazemos tudo o que fazemos; aquilo em vista de que atingimos as metas que conseguiremos atingir. Sinto meu dente, creio que ele já não doa porque meu nervo está machucado; a julgar pelo tempo decorrido, deve estar meu dente todo roído por dentro e meu nervo todo podre. Ele dói porque ele está em mim. Isso não me incomoda tanto no sentido físico quanto no moral. Essa falta imperdoável de cuidado que me remete a mim mesmo, mostra que meu mal maior é inatingível e que por ora devo me ocupar com males menores. Isso é moralmente débil e fisicamente inócuo. Não consigo mudar minhas atitudes diante de um malefício natural tão insistente.

Meu corpo e minha mente, no entanto, eles sabem o que ando buscando - que é muito grande e enorme. Quando vejo um menino, uma menina, um velho usando droga, penso imediatamente que a felicidade é o Sumo Mal, o que não implica em dizer que o objetivo da vida seja outro do que a felicidade. Não pode ser infelicidade e felicidade no mesmo sentido e ao mesmo tempo, assim mesmo como Aristóteles e Platão mandam.

Essa é a meta da vida: uma vida humana por uma felicidade coletiva. A vida é fungível e em sua fungibilidade ela é totalmente dependente das condições de seu gozo, pois é nesse sentido que o prazer nos acompanha. Essas condições são coletivas, sociais. Esses parâmetros são os limites da minha utilidade para o futuro da humanidade. O mal reside em tocar a fronteira, não em parar nesses dolores bucais, nem sucumbir diante de um anúncio apenas. Meu dente não me deixa sucumbir a mais nada, minha irmã me visita e tenta me convencer a ir ao dentista. Acho que comecei o tratamento uma vez - sim! - porque ela me emprestou dinheiro. Mais três meses e poderei ir novamente. Este mês pagarei o que lhe devo. Juro. Deste mês não passa, preciso me livrar deste simplório dolor e voltar a freqüentar lugares respeitáveis, onde o mal se vende, o mal se observa, o mal se sente. Eu dizia que a morte demonstra a fungibilidade natural da vida e seu sentido ético mais inclusivo, filosoficamente, a um tempo racional, emocional, apetitivo se chama 'felicidade': a felicidade é coletiva e determina o autoconsumo da vida individual.

Meu dente não vale 1 real! Se eu não tivesse dente, eu chupava manga e engolia os fiapos... Se eu não tivesse manga, eu engolia sal! Se eu não tivesse sal, eu engolia saliva. Minha cabeça parece que vai explodir fora adentro. Um sinal. Um machucado. Uma prova atécnica de que estou vivo. Um dente corroído é muito persuasivo, ele é um pequeno mal, meu mal: estou aqui! Não venho te curar, mas te fiz nascer e te renovo. Minha vida vale um destino mais brutal do que uma dor de dente. Minha vida vale mais sal, mais fiapo e mais manga do que uma boca cheia de dentes. Salário. O texto atrasado. O editor vai telefonar daqui a quinze minutos.

Poesia:

Isadora, não condene minha dor,

meu ridículo é solitário e infrene,

hipocondríaco, pálido e sem cor,

mulher, cardíaco, inócuo, perene;

meu sorriso te perfuma, tal flor,

aviso de vida e de água serena,

na tua pel' sedosa bate e'é plena,

mas sozinha, resseca e furta cor...

Poesia:

esse homem nesse carro não sabe quem é Bocaccio

esse homem nesse carro não sabe quem é Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade, Pahty Smith, Andrei Warhola, Denis Rodman, Goethe e Heine,

esse homem nesse carro não sabe quem é Paulo Leminsky, Itamar Assumpção, Alice Ruiz, Olga Benário, Clara Schumann, Emanuel Kant, Dostoievsky, TOlstói, Pushkin, Giacomo Leopardi, Pierre Bourdieu, Girault de Bornelh, Ezra Pound, Haroldo de Campos, John McEnroe e Roger Federer.

esse homem nesse carro não sabe quem é Paulo Moura, Eça de Queiróz, Schopenhauer, Hubble, Hindemith, Hobbes, Hegel, Hume, Husserl, Hall, Hill, Hurt, Hart, Hobsbawn, Hugh, Holbach, Hell, Helge, Hilfe, o Herz, o Helge, Hölle, Herman Hesse, Haas, Han,

o Helgchen

Helglein du

wenn du mich liebst,

mach dein'n Mund zu!

Flehe mit mir,

o Herzchen du,

Aber mach es zu, bitte,

bis Morgen früh!

esse homem nesse carro não sabe quem é Petrarca, Dante Alighierim/, Donovan Bale, Marília Gabriela, Pagú, Lygia Clark, Clarice Lispector, Beatriz Sarlo, Simone de Beauvoir, Don Juan, Dumas, Duras, Den Xiaoping, Doré, Dork, D'Arc, Dulce Maria, Cora Coralina, Drama, Dagmar, Degmar, Digmar, Dogmar, Dugmar, Dõgmar,

Dãgmar se fores à ribeira

para lavar tuas roupas

e molhares as transcinhas

dar-me-ás um beijo, dar-mo-ás.

Dãgmar, se varres a soleira

p'ra receber teus padrinhos

e sujares os dois pés

dar-me-ás um beijo, dar-mo-ás.

Dãgmar, se sonhares a noite

que eu te violara a boca

que eu te violara o corpo

dar-me-ás a bunda, dar-ma-ás; Dharma, Derma, Dorme, Dormir, Dor, Dar, Dirimir, Difícil, Dinheiro, Donga, Dengo, Dkingo, Jingle, Jungle, Jongo, Ginga, Gongo, Gum, Gun, Gronder, Grupo, esse homem nesse carro não sabe o que é:

Dolers, hermosa mía

donde se quedó tu llanto

que tocaste con mano fría,

me puse triste, de triste canto

Dolores, hermosa mía

aún tu man' tocando

por distante, aún sonríses

me puse triste, de triste canto

Dolores, hermosa mía

a tocar, sonriendo cuando

yo lloraba tus manos frías

me puse triste

y de triste

triste

Trieste. Vim, vieste. Vinhas truísta e me traíste, truísta e traidor eu vinha. Trazias a boca cheia de intrujice e eu, de Trieste. Por isso canto. Tragödie. Trama. Trema. Trena. Truman. Louis XIV.

d'accord?

oui,

les nuages esplendides

deviennent peu à peu des échos,

comme de l'eau

suspendue des pensées;

la salive suspendue: la raison: le silence sanglant.

esse homem nesse carro não sabe quem é.

Pô Pá Pé Pu Pí

Píííííííííííííííííííííííííííííííí

Pá!

Danilo da Costa Leite
Enviado por Danilo da Costa Leite em 16/05/2011
Reeditado em 19/08/2011
Código do texto: T2974378
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