OS GUARDADOS
A dor botei em um
Baú:
Lá já tinha traição, culpa.
Foi a desculpa para rever
A história que a vida
Lavra.
As palavras tomavam
um espaço considerado:
Umas velhas que não
foram ditas
outras desgastadas com
o tempo
outras que nasceram fora
do contexto
algumas de tempero
forte.
Um registro de morte
Uns choros que nunca
saíram da garganta.
Umas heranças, com traças
Vivas, sem norte.
Caminhos nunca trilhados
Que deixaram um peso
No coração
(que também estava no baú)
Uma alma quase morta
Uma amargura na fronte
Um gosto amargo na boca
E um lugar vazio na mente.
Surpresa maior: havia
uma pasta cheia de amor
que não fora dito nem
vivido
preso com tranca, sem
chave.
O baú ainda estava cheio,
eu já estava sem fôlego.
Do fundo tirei os sonhos
com lacres invioláveis
e aqueles mais frágeis,
de adolescente inocência.
Mais profundamente havia
Silêncio
em quantidade imensurável
- um jogo de dados,
um baralho...
e uma pequena porção de sorte
Havia um prato cru
degustado com pressa
e uma réplica sublime
de simplicidade
de braços cruzados na janela
e as heras cresciam firmes
pelo desfiladeiro das almas
comendo um prato de calma
que era oferecido no jardim.
Havia inanição. Mas não era
o fim.
O aperto no coração
se confundia com outros
guardados
bordados com cor viva
nos tecidos de linho da memória.
Havia terra seca, ossos de animais
rios de correnteza límpida
e marcas de pés firmes
na areia limpa do chão.
Os amigos estavam expostos
na contramão da história,
sem aperto de mão.
Os olhos viram lágrimas
e se umedeceram com um
leve cheiro de distração.
Havia razão no baú.
E uns armários de fórmica
com espelhos nas portas
refletindo o lúdico
da cacimba seca
deixando um calo na voz;
e um berço de vime a ninar
a criança que nunca veio;
e um freio que o tempo não
aceitou,
também recusado pelas
palavras:
e umas amarras dos pés
para não deixar marcas
na areia
(onde a aranha fazia sua teia
e eu teimava em desmanchar).
Na gaveta do silêncio
havia traças gordas,
alimentadas por palavras
belas
e uma janela com uma visão
privilegiada que não fora
aberta
e umas frestas por onde
o sol teimava em entrar:
Sem nunca ser notado.
Havia uma gaveta de mentiras,
uma língua solta
uma voz rouca, uma canção
morta
e um poema sem som
escondido atrás da porta.
Entre os sonhos tinha pesadelo.
No escuro, havia medo
E muita coisa na imaginação;
Tinha esperança correndo dentro
do baú
sinais de corpo pesado
e um estrado, para o cimento
da memória não pedrar.
O baú não tinha alma
As lembranças eram o prato
Principal
no banquete do domingo,
com cores vivas,
músicas eruditas,
poemas de amigos,
livros de cabeceira
e uma planta que crescia bela
na folha de rosto do sertão
(que tinha um lugar especial,
bem junto do coração).
De tudo havia lá:
uns bezerros recém nascidos
animais ferozes
um amontoado de vozes
em gravação original.
Marcas de passos de animais
E resquícios de uma vida
de outrora:
uma sacola cheia de coisas
que não existem mais.
Junto da paz existia dor,
apesar da escuridão, existia cor
e marcas de um sapato furado
do qual eu não podia me
afastar.
No deserto havia um aroma
sagrado de flor
tomando boa parte do baú,
e uma fonte de água pura
e uma mistura de raças
e umas armas de defesa,
que nunca foram usadas.
Uma roupa velha, esfarrapada
(leve como a pele)
e bela, como o ser.
O baú trazia os guardados,
novos e velhos,
e as marcas em um espelho
que jamais iria morrer;
felicidades e sofrimentos
(e um pouco de fermento
para não deixar a vida esmorecer)...
guardados no baú.