TRAVESSIA & MAIS
TRAVESSIA
A bordo vinham meus sonhos; antigamente
Usavam uniformes, brava gente,
A enfrentar garbosamente oceanos.
Eram sonhos reais; na fugidia
Luz da manhã o seu olhar luzia,
Contemplado, a sorrir, por veteranos
Que doutras tantas viagens navegavam
E sabiam como os mares destratavam
Os sonhos jovens nas ondas refulgentes:
Que muito em breve, essas tranqüilas ondas
Seriam mais profundas do que as sondas
E os sonhos não seriam suficientes.
Não é que houvessem tantas tempestades:
Foi mais a calmaria, as saciedades,
A despertar em minhalma a sensação
De que tudo era inútil desatino,
Que a multidão dos sonhos de menino
Não era mais que vaga exaltação.
Seguiram no navio, trocando as velas,
Aqueles pobres sonhos, já seqüelas
Do que antes tinham sido; inquietação
Constante no intestino, enjôo manso,
Sabendo que esforçar-se sem descanso
Não impediria sua lenta esgalhação.
Foram sendo superados, um a um,
Amorteceram; afogou-se algum,
Porém a maioria adormeceu.
Do olhar se foi a luz -- ficou desdita,
A luta se manteve, nessa aflita
Contemplação de um ser que não morreu,
Mas não vive tampouco, nessa mágoa
Inconseqüente de trilhar a tábua
Sempre oscilante do velho tombadilho:
Percepção constante e visceral,
Que não importa o ardor mais triunfal
No oceano da vida: escuro e brilho
Independem de nós, são aleatórios,
Os ventos nos arrastam, peremptórios
E o bem e o mal nos chegam sem esforço.
Sobreviveram os sonhos, resistentes,
Porém sabendo que muito mais potentes,
São o acaso e a aleivosia, seu reforço.
Assim os sonhos passaram a cumprir ordens
Dos desgostos, das pragas, das desordens,
Tornaram-se confiáveis e obedientes,
Esperando, talvez, terminaria
Em um porto essa viagem, dia a dia,
Contrário o vento e de tufões freqüentes.
E a bordo vêm meus sonhos, no presente,
Esfarrapados, magoados, no impotente
Esforço de cumprir tanta rotina,
Roídos de escorbuto, doidos, fracos,
Escravos da esperança, pobres cacos,
Com lustro ainda ao fundo da retina.
OUTUBRO
Ah, maio, maio, belo mês de Maio,
tão cedo Junho foste, que de Abril
recordo tão somente o céu de anil
e o tropel sanguissedento em que me esvaio,
nos versos que escrevi desde Janeiro,
na fúria multicor de meu Dezembro,
após o mundo devorar Novembro,
nas esperanças vãs de Fevereiro,
no Março folgazão, logo frustrado,
enquanto Julho aponta e após Agosto,
[que tantos acoimaram dar desgosto...]
mês após mês, do ano cada membro
zombou de uma ilusão: mostrou-me o fado
meus sonhos mortos sem chegar Setembro.
DEGELO
envelheci nos últimos seis Meses,
depois de vários anos de Carência,
em que me olhava ao espelho, com Freqüência,
e percebia, vezes após Vezes,
que nada havia mudado; Anestesiado
o tempo fora em mim; vivia em Coma,
meus sonhos habitavam em Redoma:
cumpria meus deveres com Cuidado.
então sem que esperasse, veio à Mente
uma nova torrente de Esplendores:
refleti meus desgostos, meus Amores,
em novos versos de teor Nascente;
descriogenei, anseios Revivi,
e por viver de novo, Envelheci.
ESTRELA D'ALVA
Foi minha vez primeira: era menino,
Onze anos apenas; e ela, treze.
Ela mal tinha seios; pequenino
Ainda era meu pênis, em que pese
Se alçasse facilmente na ereção,
Sem saber realmente o que fazia.
Antes mesmo de tentar masturbação,
Num ventre de criança se estendia;
E lhe dava prazer -- mais um calor,
Precoce deiscência de uma flor,
Enquanto eu mesmo sequer ejaculava.
Era um pendor gentil, uma luxúria
Isenta ainda de emoção espúria,
Que nem sequer de amor nos maculava...
RECORDAÇÃO IX
Não sei se insisti eu, ou se foi ela:
A trança era dourada e seus cabelos,
Longos, sedosos, nos mais sutis desvelos,
E como me aprouvera ora revê-los!...
Um dia me chamou, de sua janela,
Conversamos os dois, pela retorta
Da alquimia abriu-se aquela porta:
Uma trilha segui; e outra foi morta.
E nunca nos amamos, mas que espanto
O prazer de seus braços, quando o pranto
Escorria de meu ventre para o seu...
Foram tão dolorosos tais amores!...
Ela me encheu de orgasmo e resplendores,
Seu coração, porém, nunca me deu!...
RECORDAÇÃO X
Apenas a delícia na memória
Me resta agora, foi-se toda a mágoa,
Lembram somente um perpassar de glória
Meus olhos duros, dantes rasos d'água...
Foi minha tantas vezes... No entretanto,
Era meu corpo só que ela queria;
E quando não quis mais, perdi meu pranto,
Porque seu peito jamais convenceria...
Nunca me foi fiel, era inconstante,
Para ela fui tão só mais um amante,
Na zombaria do esposo que ultrajava.
E eu... deveria me dar por satisfeito...
Embora fosse o traidor, pelo direito,
Traído me senti, tanto que a amava!...
ESCUMADOR
pois vou fazer um plágio de mim mesmo,
fingir que ainda sou puro, que inocentes
são ainda meus dedos e meus dentes,
meu fígado e meu sangue, que anda a esmo;
eu vou fingir então, que sou poeta,
se bem que nunca fui, sou ferramenta,
que de escrever maus versos se contenta,
brotando fundo da emoção de esteta...
porque poetas... há tantos por ai...
plagiando-se uns aos outros, sem vergonha,
de vestir platitudes, sabor vago e sem sal...
prefiro apenas mostrar quanto sofri,
que poeta não sou, porém quem sonha
em plagiar a si mesmo até o final...
TRIDENTES
outra porta fechou-se, pois se Ocupam
os servos do destino, sem Cessar,
sedulamente meus sonhos a Cortar,
que nem me inquietam mais nem Preocupam
e nem sequer consigo me Abalar:
são dessas coisas que vivem me Ocorrendo,
vez após outra, num fragor Tremendo,
sem que vitória venha me Aliviar;
pois eu sinto pisarem meu Sepulcro,
de cada vez que de minha vida o Fulcro
pareça finalmente Alcandorar:
como se os deuses apenas Balouçassem
a cornucópia murcha e me Atiçassem
para poderem melhor me Espezinhar.
INSPIRADOR
coroadas de cachos e gavinhas
as pisoeiras esmagam frescas uvas,
nas largas bordalesas: longas linhas
de esguichos as recobrem; como luvas
avermelham seus braços; tais quais meias
lhes sobem pelas pernas, quase ao ventre,
enquanto tu, Dionysos, incendeias
o fértil vinho que o fermento adentre.
após ser esmagado, ferve o mosto
e em álcool se transmuta, numa calma
transformação, que me afogueia o rosto,
ao ver meus sonhos a Teus pés imersos;
porque uvas não são: é o sangue d'alma
que se fermenta em vinho nestes versos.
[para meus dois amigos, Sappho e Alkayos].
SOMBRA
ela chegou, consigo trouxe a chuva,
para atiçar em mim o chumbo liquefeito,
ela me deu calor à margem do direito
e, com palavras mudas, estendeu-me a luva,
num gesto antigo assim, em tom de desafio,
se me dispunha então a tudo retomar,
as idas e retornos, hesitações de amar,
na calidez do inverno e gelidez do estio.
nem sei
se poderá
plantar-se
novamente
dentro em
meu coração,
porém trouxe
a semente
e dentro
dessa luva
um gérmen
de botão,
como se lastimara
a perda e que avaliara,
depois de tentar tudo e tudo experimentar,
maior fosse a constância que o drama da paixão.