FIM DO DIA

Mais um cigarro e um sacudir dos cabelos sujos

Mais um banho lavando o dia que acabou

Menos um olhar colhido entre as nádegas quando passo nas ruas

Menos um abraço fortuito de um estranho no ônibus lotado

Mais uma noite suando, enrolada na toalha, esperando...

Esperando quem nunca prometeu voltar

Quem nunca esteve aqui

Mas que volta, sempre, sem exigir de mim o que já sabe:

Que sou dele e para ele me banho e me perfumo

E eu nunca respondendo dele o que já sei:

Que ele não vem mas me pertence, sem perguntas nem planos futuros.

Em sua homenagem me embebedo e danço

...Janelas abertas, som nas alturas, cuba libre...

Compro toalhas felpudas e curtas, brancas, e cruzo as pernas no parapeito da varanda, de onde posso ver a Lua sem me levantar

De onde ele poderá me ver, se vier, se ainda estiver morto e só

De onde posso voar sobre o mundo lá de baixo, ao seu encontro

E cantar canções de ninar inventadas nas entrelinhas de um blues, para que ele tenha um sonho bom,

Se já estiver dormindo

Mas

Ele também me espera na sua solidão vagabunda

Fumado, fumando, tonto, tenso e teso

Ali, logo em frente à minha penumbra, toda noite

Por trás de sua cortina esvoaçante que desvela seu olhar no lusco-fusco

Entrando em mim como espinhos envenenados invisíveis

Que doem nas minhas cicatrizes ainda vermelhas

Soando em minha noite com sua silenciosa guitarra

Que pressinto, prevejo, perscruto e escuto

Quando o vejo dedilhar o corpo difuso na luz do luar

Talvez suspirando um último acorde?

As portas da percepção escancaradas na brasa que sugo como se disso dependesse a vida dele

E depende.

Ele vive enquanto fumo e me lanço no ar

sem sair do lugar.

Ele,

Que aspira meu cheiro cansado de cadáver insepulto, de longe

Que não se cansa em desfilar nu e altaneiro

Que se balança no meu ritmo, enquanto rodopio

Que nunca, nunca, nunca

Fala comigo além dos espasmos que vibram meus ecos

Sonoros como marulhos de um maremoto depravado e puro

Porque sabe que nada há para ser dito entre mortos-vivos além disto

Além do que nos dizemos nas madrugadas entre baforadas

E olhares mal dissimulados

E os corpos expostos em silhuetas e perfis, como se por acaso

E poses de enfado fingido quando nosso sangue explode em uníssono

Antes de irmos dormir abraçadinhos

Com nossos travesseiros

Antes de beijarmos os copos no último gole

Que apaga tudo

Exceto o brinde mudo que ele me faz

Enquanto fecha as cortinas e some

(Até amanhã)

E eu retribuo o brinde numa pirueta

(Até à noite).

Iama K
Enviado por Iama K em 17/03/2011
Reeditado em 21/07/2012
Código do texto: T2854798
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