E SE...
Para Chico Buarque
E se a melodia de Hime
não tivesse sido engravidada
pelas buarqueanas
do Chico, palavras mágicas
E se a magia do circo
virasse pedra em frente
ao coreto
nas tardes de domingo
E se a criança não sorrisse
do palhaço em sua máscara
de cristal
colada ao rosto do homem
E se o sono não tivesse
sonho
E se os sons não tivessem
baião
E se a flauta não fosse
doce
E se o gosto fosse sempre
amargo
E se no âmago não houvesse
essência
E se a beleza não fosse
nos olhos
E se as mãos não tivessem
alma...
E se a rima não tivesse Chico
como seria o desenho lógico
da construção?
E se a vista fosse de concreto
E se o cimento não tivesse
o olho do arquiteto
E se a arte não fosse
louca
E se o ouvido de Beethoven
não fosse santo
E se Bach não fosse barroco
E se a noite não trouxesse
os boêmios
E se a música desprezasse
os poetas
E se a chave fosse filha da
porta
E se a realidade fosse menos
morta
E se a política fosse a marca
da besta
E se a sesta fosse
globalização
E se a televisão iluminasse
o lixo
E se o prazer não tivesse
sexo
E se o nexo fosse um
padrão
E se todo patrão fosse bom...
E se todo mundo se chamasse
Raimundo?
E se a poesia não tivesse
Drummond?
E se nas praças não houvesse
jardins, nem crianças brincando
nem bancos,
poderia haver televisão?
E se as palavras não fossem sinceras
E se as letras não gostassem de
Chico
Nas galerias haveria clarão?
E se os Doces Bárbaros fossem santos
E se Zumbi fosse branco,
como leite
Como seriam os domingos no parque?
E se o sexo não fosse tão bom
E se em Minas não houvesse o
Clube da Esquina
Como seria o mundo sem Tom?
E se no Sertão não houvesse carcará
E se Lampião tivesse morrido de
inanição
A história seria mentirosa?
E se a alma envelhecesse,
haveria esperança?
E se?
E?
E se Gonzaga, Pelé e Lampião
Fossem filhos do mesmo pai;
E Guimarães Rosa fosse só
uma flor;
Machado só cortasse
árvores;
Milton não tivesse sido Bituca;
A música não tivesse sinfonia?
Será que será que chegaria a
Roda Viva?
E se o dia não tivesse
véspera
Se o sonho não tivesse
réstia
Se o sábado não tivesse
festa
Se a noite não tivesse
sombra
Se a janela não tivesse
fresta
Se o dedo não tivesse
anel?
Se o céu fosse perto
Se Deus não houvesse
Se a casa não tivesse
alicerce
Se o café fosse sem pão
E se o amor fosse vão
E se a filosofia fosse uma
cor
E se o prato fosse de suor
E se eu abrisse o baú do Raul
Se tivesse nascido há
dez mil anos
Se para a paz mundial
houvesse um plano
E se tivesse nascido cigano
E se tudo fosse um engano
E se não houvesse a viola de
Almir?
Trouxeste a chave?
E se a pergunta for um entrave
E se a resposta for um engodo
Se meus pés estiverem no lodo
Se não houver senso de humor?
E se a poesia fosse concreta
E se os versos fossem com métrica
E se a dúvida tivesse réplica
E se houvesse calos na mão do
doutor
O que seria de Severina:
Morreria ou ficaria viva?
E se chovesse uma chuva fina
A doer os ossos da testa
E se não houvesse fim
Desde o começo da gesta?
- Cálice!
E se não morresse a solidão?
E se...
- Cálice!!
E...
- Cálice!!!