SOBREVIVÊNCIA I-XV

sobrevivência I

a vida é pouco mais que a eterna dança

dos fogos-fátuos, pelas lantejoulas

enamorados, em sonho de papoulas,

ou vagalumes inebriados de esperança.

a vida é pouco mais que uma criança,

com o olhar esgazeado, pombas-rolas

a contemplar os gatos, sombras tolas,

nessa injunção irreal da vida mansa...

a vida é uma tocaia, sempre à espreita;

cada rosto de mulher é uma armadilha,

cada corpo de mulher, a sepultura,

em que morrem milhões, vida sujeita

a que um só sobreviva à longa trilha

que leva à absorção, na esfera escura...

sobrevivência II

à vida eu agradeço, que nunca me deu nada,

pois tudo quanto tenho, tomei com meu esforço:

tive de planejar, montar o meu escorço,

até que minha fatia me fosse recortada.

à vida eu agradeço, modesta e esforçada,

buscando retirar o peso de meu dorso,

dos bens que adquiri nessa aridez do corso,

para depois mostrar-me os dentes, esfaimada.

à vida eu agradeço, que tanto me mostrou,

apenas me acenando, tantálica e cruel,

tirando com a esquerda o que a direita dava.

à vida eu agradeço, porque ainda não tomou

o pouco que possuo, em agridoce fel,

enquanto me desvio das setas de sua aljava.

sobrevivência III

eu puxo as rédeas e acalmo a multidão

desses ex-votos que a carne multiplica:

são promessas cumpridas, que se indica

em simulacros de contrafação...

nem sempre deixo fluir a brotação

dessas chamas geladas, que me fica

grudada aos dedos e a seiva mortifica,

enquanto as unhas esfacelam sem perdão,

não querendo que a memória se derrame,

mas reprimindo seu maior reclame

neste mundo crivado de baraços,

porque prefiro contar os fatos bons

ou no máximo pintar em brandos tons

os que descrevem vergonha ou embaraços.

sobrevivência IV

em frente de minha casa, o calçamento

é de lajes de basalto, qual deserto.

quando caminho, logo chego perto

de outras paisagens, em devaneamento.

às tijoletas dou diverso tratamento:

são florestas, riachos ou trigais,

são hortas e jardins, são pantanais

e a cada passo eu tomo um novo alento.

nessas calçadas, eu lembro as aventuras

dos livros de minha infância, uma a uma,

existem mares, cavernas e torrentes...

completamente esquecido das agruras,

eu piso nessas terras resplendentes,

em que o sândalo dos bosques me perfuma.

sobrevivência V

na sala tenho um relógio mais antigo

que todos meus avós: séculos cruza

e às mãos que deram corda se recusa

a refletir no mostrador consigo.

qualquer dia, por idêntico perigo,

passarão os meus dedos nesta escusa

e transitória vida, em mim conclusa:

a corda fica e eu vou para o jazigo.

e ainda falam: "vão-se os anéis, ficam os dedos"

como um consolo em dias de pobreza:

mais vale a vida do que os ouropéis...

mas essa vida ensina os seus segredos

e sei bem como é falsa essa certeza:

pois vão-se os dedos e ficam os anéis...

sobrevivência VI

tenho esta dúvida: se imortal eu fosse,

se dor nunca sentisse, nem cansaço,

e se doença alguma em meu regaço

se instalasse, qual filho indesejado,

se de meu corpo não perdesse a posse,

em caso de acidente, se as feridas

logo sarassem, como se mil vidas

eu tivesse; e o mundo inteiro desfrutado

encontrasse a meus pés, valor daria

a essa bênção... quase maldição?

sei, muito mais que muitos, poderia

utilizar em pleno estudo e produção

essa vida longeva... mas, e um dia,

se partiria de tédio o coração?

sobrevivência VII

piso de leve e quase sem ruído,

em negação de meu peso e meu tamanho;

para os bens desta vida não me assanho

e me contento com o pouco recebido.

talvez porque não os tenha perseguido,

que meu passo foi sempre precatado:

evito confusões. prefiro ao lado

observar como os outros conseguido

têm o que buscam. eu os olho, sem inveja,

faço o que tenho ao alcance. só lamento

não dispor de mais bens a repartir...

e penso que, na vida, o que se enseja

é não causar impacto. e digo ao vento

que pouco ruído faça ao me engolir.

sobrevivência VIII

os árabes recontam velha fábula

sobre um camelo e seu pesado fardo,

que transportava tranquilo e sem resguardo,

para seu dono, igualmente velho rábula,

que um dia, uma palha do caminho

recolheu, colocando-a no camelo,

que não mais suportou, por todo o zelo:

ajoelhou-se e morreu, fraco e sozinho.

foi assim meu amor, pesada carga,

que suportei por anos, sem protesto,

até ouvir a derradeira acusação...

partiu-me a espinha, por ser tão amarga,

talvez apenas um inocente gesto,

mas que esvaziou-me inteiro o coração.

sovrevivência IX

eu nunca ouvi cantar o rouxinol,

exceto em gravações, fraca elegia,

nem andei nas plantações da rússia um dia,

quando floresce alegre o girassol...

todavia, no interior deste crisol,

instalado em minha mente fugidia,

mil lembranças me ocorrem, vaga cria

de uma noite triturada em arrebol.

e assim me vejo, cheio de energia,

enxada ao ombro, marchando para a lida

e me derramo todo no teclado...

de forma igual que na ilusão perdida

eu apenas pretendo a nostalgia

de ter passado a noite de teu lado...

sovrevivência X

sempre tive a ilusão de outras vidas

ter percorrido nesta terra impura:

tive a ilusão de uma existência dura,

tive a quimera de sagas bem vividas.

tive a emoção das noites mal dormidas,

em que me despertara a cada agrura,

quando azagaia o coração me fura,

quando uma clava as mãos me tem partidas.

mas foram mudos, então, os pesadelos

ou falaram as delícias de meu tédio,

ou vidas mesmo encenei em meu alhures?

ou são só recordações de antigos zelos,

da luz do antanho, em rosicler assédio

dos fantasmas melífluos do nenhures...?

sobrevivência XI

será que, em cada noite, eu atravesso

os mares de geleia da inconstância

e cruzo tais falésias, nessa instância,

até chegar a terras, que então meço

com meus passos, descontrolado apreço,

e vivo em labaredas, extravagância

das mil centelhas de minha redundância,

em que recebo muito mais que peço?

ou será que sou por outros visitado,

que me controlam as sagas multicores

e me fazem reviver o que viveram?

ou na memória, de seu canto mais fechado,

surgem as vidas de meus antecessores,

que só dentro de mim sobreviveram?

sobrevivência XII

ou da luz vívida desta imaginação

eu sou o pai e a mãe, o gerador,

capaz de farejar todo o sabor

desses fatos que nunca ocorrerão?

nesse antanho perdido do verão,

são de morfeu os sonhos ou o frescor

ou é todo meu o viço multicor?

é nessa dúvida que exponho o meu quinhão.

eu sonho o inverno e a primavera assim:

sonho o cinzor e o mágico carmim,

fantasmagórica luz da nostalgia

de todo o ardor que permanece em mim,

em que sonho a mim mesmo, em fantasia,

nessa alvorada de meu fúlgido clarim...

sobrevivência XIII

se eu mergulhar no poço de teus olhos,

chego a ter medo do que vou encontrar...

será que em teus abismos vou achar

o verdadeiro amor, entre os refolhos?

ou irei naufragar, entre os escolhos

dos recifes de coral do teu olhar?

sereia voluptuosa em seu cantar...

quiçá os meus cobrir devesse com antolhos...

nunca se sabe o que uma córnea esconde,

ao navegarmos do ótico nervo a trilha,

será amor ou será contentamento?

será vaidade apenas, que assim ronde

ou o desejo da posse que perfilha

esses meandros de teu pensamento?

sobrevivência XIV

antigamente, desta forma se cantava:

"coelhinho da páscoa, que trazes pra mim?

um ovo, dois ovos, três ovos assim...?"

nesse motivo que às crianças encantava.

este domingo, a zero hora publicava:

"coelhinho da páscoa, que trazes assim?"

"a carteira de trabalho: assina pra mim!..."

numa inversão que a verdade registrava...

esse mistério, em que o olhar da garotada

reluzia, até chegar a madrugada,

se reduziu a um fato comercial...

não há barbinha de algodão no travesseiro,

nem se procura no jardim, o dia inteiro,

qualquer milagre do sobrenatural...

sobrevivência XV

até que ponto demudou a sobrevivência!

hoje os sonhos já vêm prontos, digitais,

são transmitidos a cada dia mais,

por essas caixas bobas, com frequência,

ou vêm em videogueimes de violência...

a magia desertou velhos quintais,

chamam de musas, durante os carnavais,

essas mulheres que se expõem, sem inocência.

nesta funesta eclosão de mediocridade,

em que se apela para o mais vulgar,

já não se sonha mais, nem devaneia...

pois em pixels degradou-se a sociedade,

não se podem mais quimeras encontrar

e a luz dos elfos não mais nos incendeia.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 23/02/2011
Código do texto: T2811141
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