BOTÕES DE OSSO

BOTÕES DE OSSO I

Plantei

o meu amor por ti no meu jardim:

lancei meu sêmen e o retrato

que não tinha;

na mesma cova juntos enterrei.

Semeei

meu coração da mesma forma assim,

na mesma cova em que

a semente vinha,

por garantia do sonho que sonhei.

Um dia,

passada a geada e vinda a primavera,

a dicotiledônea

eu vi brotar enfim:

entre outras flores quase não se via.

Sentia

não fosse mais uma esperança mera:

que o broto assim nascido,

em parcimônia,

minha carne inteira me devoraria.

Aguardei,

dentro do mais solene ceticismo,

querendo crer, porém ainda descrendo,

em meu solipsismo,

até te ver crescendo em meu jardim.

BOTÕES DE OSSO II

Chamei,

inutilmente, pela tua atenção,

com a chama fraca deste meu chamado,

em som manchado:

que quem procura acha, encontra lenha.

Talvez não tenha

nada mais que combustível para queima

do próprio coração, em fogo brando:

minha voz reclama,

chamei a chama e afivelei a flama.

Flanou o archote,

sem chegar a esquentar-me a refeição;

guardei na mão essa inteira erupção,

em ácida ilusão,

das bolhas dessa mesma queimadura.

Queimei

o meu chamado na mesma ignição

que teu nome gravou na minha palma

e retirou-me a calma

por todo o tempo que o porvir me traz.

Pois no chamado

que me queimou, em tão singela paz,

aceso o facho da auto-cremação,

apenas vejo que meu coração

não se desfaz.

BOTÕES DE OSSO III

De fato,

eu já nem sei porque "botões de osso" ganhei ou escolhi para ser título

ou ser legenda,

dada a esta série de sabor mais grosso.

Bem mais puro

sempre foi o brilhar de meus sonetos,

são mais secretos, são menos herméticos,

porém melhor descrevem

os meus afetos e tantos desafetos.

Este formato livre

me escraviza e igualmente martiriza

essa medula de meus próprios ossos,

rasguei na carne fossos

e os minerei para fazer botões.

Drenei

toda a medula no interior do cálcio,

guardei em tubos feitos de minhas veias,

em rubras peias,

amarradas as pontas com meus nervos.

E fabriquei,

com mil cuidados, meus botões de osso

para prender as vestes que vestia,

cobrindo a carne em verde investidura,

que, sem os ossos, nem mais se movia.

BOTÕES DE OSSO IV

Foi, portanto,

belo exercício de inutilidade,

como são tantas ilusões humanas

e desumanas:

nem mãos eu tinha para pregar botões!

Tomei

essas redes neurais de minha mente,

para forjar-me um par de novas mãos

e a inteligência

sofreu bastante, como consequência.

Mas estes dedos

me permitiram a quebra de gravetos,

mil galhos secos que roubei pra mim,

até montar um esqueleto vegetal

que introduzi, de novo, na minha carne.

Enverdeci,

com a clorofila das dicotiledôneas,

fluindo entre meus músculos,

arcanos os opúsculos:

lavor de estátua viva e sem maldade.

Então vesti

essa mesma indumentária que tirara,

pele por flor e a flor tornada em pele

brotou-me assim,

como uma planta óssea em meu jardim.

BOTÕES DE OSSO V

Esperar o que se pode

de roupa presa por botões de osso?

Tendo roubado o próprio sustentáculo,

desperdiçando

o próprio viço nessa atividade?

E assim eu fiz:

cada poema foi um botão de osso,

que retirei de minha carne mesma,

sem ter piedade,

ossos partindo, com desfaçatez.

Por que teria?

Meus ossos só serviam de suporte

a transportar meu porte, sem destino

e, em gesto fino,

fui polindo um a um em diadema.

Não precisamos

só para as vestes ter tantos botões:

eu fiz colares para os corações,

tornozeleiras,

para adornar os pés de minhas senhoras.

E assim, marchei,

desprovido de meus ossos, afinal,

que os dei como presentes, cada um,

nos versos pobres

de quem não tinha ouro para dar.

E desse modo,

preciso de ossos de uma mulher viva,

que queira partilhar minha carne

e o sangue,

e se disponha a me nutrir, exangue.

E se enrolar

numa só pele que a nós dois envolva,

que de dentro, em conjunto abotoaremos,

com o que restou

de meus botões de osso.

BOTÕES DE OSSO VI

Que a vida é assim:

só pode cada um dar o que tem

e quem dá o que tem a pedir vem:

pedi também

qualquer botão de osso para alguém.

Mas até hoje,

por mais que ossos tenha distribuído,

meu esqueleto segue destituído:

não recebi em troca

dos ossos meus os ossos de ninguém.

Eu poderia,

é claro, ir correndo ao cemitério,

que fica bem pertinho de minha casa,

abrir as sepulturas

e roubar novos ossos para mim.

São ossos secos,

meio roídos de ratos e baratas,

que não possuem medula ou hemoglobina

nem clorofila

e mal me podem servir como arcabouço.

E é por isso

que ossos preciso de mulheres vivas,

que comigo repartam carne e sangue:

não mais exangue,

enfim completarei botões de osso.

BOTÕES DE OSSO VII

Eu só percebo

como é difícil para mim o verso livre.

Eu realmente tento outro formato

e então descubro

que tão somente criei nova cadência.

A experiência

que iniciei com meus botões de osso

apenas reciclou final insosso,

e para o mesmo fosso

redunda sempre e escorre nesse sulco.

Mesmo que busque

evitar novo formato permanente

eu vejo aqui apenas alternados,

cinco quintetos com versos mutilados,

porém compostos em ritmo constante.

É interessante

descobrir que por trás destes quintetos:

dois versos curtos contra três mais longos,

se acha o secreto

descantar da meiga trilha do quarteto.

E mesmo aqui,

por mais que eu queira dar novo formato,

contra a cesura e as rimas eu me esbato

e fico sempre

acorrentado a verso nada livre.

BOTÕES DE OSSO VIII

Eu vou empós

a trança inexistente nos cabelos

de quem eu decidi chamar de amada,

mulher completa,

em sua pureza e em sua desfaçatez.

Eu vejo nela

o rosto expectante de outras mil:

olhos castanhos, verdes, cor de anil,

mulher secreta,

nunca sei se me espera ao amanhecer.

Já me queixei,

em centenas de versos rebotalhos,

descrevendo a profundez de tantos talhos,

mas eu a quero,

mesmo sabendo que me desapontarei.

Não é quem quero:

ela é si mesma, em sua independência,

ela é si mesma, nessa inconsequência

de ter mil almas,

violentas, ponderadas ou mais calmas.

E assim a quero,

sem saber a quem terei no dia seguinte,

se me dará carinho ou mau acinte,

mas fiel regresso

aos mil pendores que habitam numa só.

BOTÕES DE OSSO IX

Eu bem queria

que me desse mais um pouco de carinho

e menos amargura me mostrasse

nessa surpresa,

com que parece oscilar por outras mentes.

O corpo é um só,

com tantos atributos femininos

e me desperta humores fesceninos,

mas a maneira

com que me encara oscila diariamente.

E talvez seja,

realmente, um conjunto esquizofrênico,

alguns de cujos membros mal toleram

estar comigo,

enquanto eu me convenço que amo a todas.

Algumas têm

o que parece ser amor profundo,

mas outras, de pendor mais iracundo,

me põem em fuga,

pois nem sequer ela sabe o que me espera.

Mas permanece

junto de mim, seja seu vulto irado

ou com sorriso apenas esboçado

e nunca saberei

quando se acha pronta para um beijo.

BOTÕES DE OSSO X

Mas eu usei

a pele de minha carne por tecido

e um manto costurei, que tem unido

seu corpo ao meu,

mesmo quando procure estar distante.

É como a capa,

tanto buscada pelos alquimistas,

para serem invisíveis nas conquistas

dos dons do mundo,

sem serem atingidos por hostis.

É inconsútil

essa capa costurada com fibrilas

geradas por plaquetas de minha alma

e não há como

separar os que se encontram sob ela.

A única abertura

é a bainha em que caseei botões de osso,

usando como linha minhas pestanas,

olhando cego,

por olhos que não podem lacrimar.

Mas fechei bem

e assim a trago aninhada contra o peito,

quer tenha, quer não tenha tal direito

e a chamo minha,

na mesma chama que a queimara no meu leito.

BOTÕES DE OSSO XI

E, no entretanto,

por tanta vez já provocou meu pranto,

nos dias mornos do desapontamento,

que desconfio

dos dias quentes desse seu carinho.

Fico a cismar

porque agora me trata deste modo,

se tanta vez tratou-me como incômodo

e então me disse

palavras tolas, sem arrependimento.

Já tive antes

súbitas fases de amor sem condições,

mas surgiram depois as ocasiões

em que mudou,

nem parecendo ser a mesma de antes.

Por isso, temo

entregar-lhe o coração mais uma vez,

nessa esperança de que seja permanente

o novo jeito

com que sorriem seus olhos para mim.

E às vezes, quero,

mas não chego a dizer que assim prefira

que se demonstre mais indiferente

e não oscile

entre os extremos opostos do carinho.

BOTÕES DE OSSO XII

Que brote, então,

esse enlace final da hemoglobina,

nessa verde reunião das mariposas,

com a clorofila,

mesmo que seja rede que me prenda.

Os meus botões,

transformados em versos cor de tinta,

costurados sem rimas, mas caseados,

estão bem firmes,

em suas casas de pele sem rasgões.

Que chegue a hora

em que os gravetos que formam os meus ossos

se enlacem firmes nos gravetos dela,

a ninfa esquiva,

que até aqui não abdicou do bosque antigo.

E que perdure

essa farsa em que ponho todo o alento

e que forneça amor como sustento,

mesmo que ela

o aceite apenas como um dom devido.

Porque os botões

pregaram firme sua alma contra a minha

e por mais que se rebele de mesquinha,

está comigo,

nas entranhas felinas de sua alma.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 21/02/2011
Código do texto: T2805091
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.