SEIXOS DE CHUMBO

SEIXOS DE CHUMBO I

Os seixos rolam pela ribanceira,

são levados pela força da corrente,

uns contra os outros batem bem frequente,

nessa liquida e pura cremalheira.

Cada criança rola, por inteira,

do ventre de sua mãe, inexperiente,

mas tão logo se mistura a outra gente

suas arestas vão quebrando na ribeira.

Por mais que seja em casa protegida

e até acredite ser do mundo a dona,

não demora a perder tal ilusão...

Pois somos seixos, através da vida

e aos entrechoques, aos poucos, se abandona

toda esperança, por desilusão!...

SEIXOS DE CHUMBO II

Também te entrechocaste, com certeza,

contra os outros humanos ao redor;

em cada choque uma ilusão menor

desliza pelas águas da incerteza.

São grãozinhos de areia, sem beleza,

que descem para o fundo, na indolor

mistura nessa lama, na incolor

massa alisada pela correnteza.

E nem brilhar conseguem tais grãozinhos,

são alicerce do correr da humanidade

e, lá no fundo, nunca chega a luz.

Nessa camada os sonhos pequeninhos

se fazem lodo para a eternidade,

enquanto o velho seixo a água conduz...

SEIXOS DE CHUMBO III

Eu me entrechoco comigo a vida inteira,

nesta minha permanência na cidade,

na mesma casa, em igual velocidade,

na mesma peça em que vivo a pasmaceira.

Bato na sombra de mim, a sombra herdeira,

enrolada em sua própria opacidade,

sobreposta em camadas nesta idade

a que me sobreponho, derradeira...

Quando me deito na marca que deixei,

nesse modelo de constante gesto,

em tanta noite a sós, vivida a esmo,

eu beijo a sombra que sempre permutei

porque, afinal, pode haver maior incesto

que o realizado com a gente mesmo?

SEIXOS DE CHUMBO IV

De meus seixos já de há muito foi-se a aresta:

se arredondaram nos embates invisíveis,

por mais que os choques sejam inexauríveis,

nas cuícas e matracas desta festa...

Perderam todo o gume e corte nesta

desenfreada corrida aos perecíveis...

Seixos rolados, conchas impossíveis

de conservar a forma em cor funesta...

Dir-se-ia que, assim, nada mais quebra...

Mas há espaços na mesa das esferas:

cabe essa areia que perdeu-se a esmo.

Porém não só de pó. E nem requebra

a minha substância nas esperas

e nem consigo me encaixar comigo mesmo!

SEIXOS DE CHUMBO V

Envolto em adrenalínico esplendor

(Toda a ansiedade envolta em adrenalins,

eu busco em vão os meus epinefrins),

como contraste ao "verme vencedor"... (*)

Talvez sair devera após o amor,

(mas sou cercado por serotonins,

no banho multicor dos endorfins),

sibarítica a noção de tal ardor.

Mas enquanto me entregar ao hormonal,

sinto que vivo na eletricidade,

ânions e cátions em eterno sexo.

Em suas sinapses de viço natural

eu sou enzimas de imaturidade,

amotinadas contra qualquer nexo.

(*) Um abraço a Edgar Allan Poe.

SEIXOS DE CHUMBO VI

Mais perto quero estar, amor, de ti,

não apenas em encontro intermitente,

mas que seja esse beijo permanente,

tal qual antigamente pressenti.

Eu quero estar contigo sempre ali

onde cálido é o amor e inconsequente,

onde se quer amor sempre frequente,

no perfumado engano em que vivi.

Que seja assim, na dor e na tristeza

ou na alegria de um perpétuo abraço,

em que todo o afastamento seja nulo,

na eternidade feita de incerteza,

ambos envoltos no mesmo chumaço,

como dois bichos-da-seda num casulo.

SEIXOS DE CHUMBO VII

Rolam os seixos quais pedras de rim,

rasgando, lentamente, os seus canais.

Pelos esfíncteres alargam-se, fatais,

nessa dor fina de lacerante fim.

Até a uretra abrem caminho assim,

é demarcado por cansados ais;

finalmente, a pedrinha chega ao cais

e para o mundo é expelida, enfim...

Também a alma possui seu fel e urina,

que se derramam em plena maldição,

corrompendo de vermelho todo o ouro.

E é com esse malquerença que se fina,

porque na alma não existe micção

e tais seixos se acumulam em desdouro.

SEIXOS DE CHUMBO VIII

Não é a lamúria do ressentimento,

nem a exclusão ou mesmo qualquer dor

que nos torna mais nobres nesse ardor,

abrindo a alma para o enriquecimento.

Muito ao contrário, é pelo sofrimento

que se acumula impureza até maior.

A penitência nunca tem valor

se não purgar a mesquinhez do sentimento.

Bem ao oposto do que clamam confessores,

prelados e profetas pela história,

o que nos faz sofrer, nos amargura

e é tão somente o sucesso dos amores,

ou outro alvo qualquer de justa glória

que nossa alma adorna e torna pura.

SEIXOS DE CHUMBO IX

Pois todo amor é luz, seja qual for

o objetivo final que nos alenta:

seja amor por mulher que se apresenta,

quer seja amor ideal, amor de flor,

quer seja amor filial, fraterno amor,

quer seja amor ao seio que alimenta,

quer seja amor ao pão que nos sustenta,

quer seja o êxtase do divinal cantor,

cuja canção o mundo ainda conserva

desde o dia inicial da criação;

quer seja o amor por esse vasto oceano,

quer seja amor por coisas em caterva,

quer seja amor por vento em viração,

é tudo o mesmo amor e amar é humano.

SEIXOS DE CHUMBO X

Mas quando essa amargura nos devora,

quando amor é polvilhado no pilão,

seixos de chumbo invadem o pulmão:

pura areia respiramos nessa hora.

Por isso, tanto dói quando demora

a chegada do amor ao coração,

a saída do amor, desolação,

a evanescência desse amor de outrora.

Por isso, tanto rói esse polvilho

do amor esfarelado no monjolo:

percorre as veias e se solidifica,

em mais seixos de chumbo, falso brilho,

calcificados no coração do tolo

em que o abandono pousou e o mumifica.

SEIXOS DE CHUMBO XI

E permanecem os calos da nudez,

amarfanhados na vazia utilidade

desse tremor que tal futilidade

vai aplicando desde o calcanhar,

até chegar ao próprio polegar,

as carnes amanhando por vaidade,

nessa impureza da espontaneidade,

nessa esperança que é desfaçatez!

Pois no suor escorre cada seixo

ou saem pelos olhos ou saliva

causando o falso alívio da bonança,

mas no caminho que percorro deixo

seixos de chumbo e a areia então se ativa

e retorna a meus pés na mesma dança.

SEIXOS DE CHUMBO XII

E no entretanto, entesouro cada seixo

que já engoli na vida desregrada,

cada ilusão por cascalho demarcada,

cada prazer perdido por desleixo.

Crucificadas as mãos em cada freixo,

toda visão de ouro avermelhada,

toda dolência de amor abandonada,

somente os seixos em memória deixo.

E assim, vou empilhando ao coração

cada doçura em azedume consagrada.

Porém cada cicatriz acumulada

e cada tentativa fracassada

são pequenas migalhas de ilusão,

mil pedrinhas de minha vasta coleção.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 20/02/2011
Código do texto: T2803290
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.