Cafua
É! Eu estou aqui...
magra, com sono, com fome,
doente, nervosa, desesperada...
e o pior de tudo, sozinha.
Trocando tudo por um dinheiro
que nunca esteve nem vai estar na minha mão;
troco minha vida por uma vida
que me fizeram acreditar existir,
um lugar de castigo para um corpo cansado
e uma alma frustrada...
Maldito vazio infinito,
cores tão vivas,
pessoas tão alegres.
E ainda há essa voz que dia, lá dentro,
que a culpa é minha
por perder meu tempo divertindo-me...
no pouco tempo que me resta.
E o tempo não foi meu amigo
quando me disse aquela mentira,
que a vida era mesmo bonita
e que em algum lugar existiria alguém pra mim.
Eu acreditei em você
e procurei ficar calma e esperar...
só que o tempo passou rápido demais
e eu acabei sozinha nesse lugar infecto,
companheira da solidão e da angústia.
Eu não queria as suas promessas,
nem, ao menos, queria promessa alguma...
E agora que estou, há muito, doente e cansada,
vejo-me sentada num corredor vazio;
ninguém para abraçar-me à noite
e o sol batendo-me nas costas
em pleno meio-dia,
pedindo carona para lugar nenhum,
com dor de cabeça, raiva, insônia.
De mãos e braços vazios,
pele áspera e joelhos arranhados...
vida seca, olhos vermelhos,
não do vício, infelizmente,
mas da dor e das lágrimas,
muitas... e ácidas.
De tudo isso, só me restam os poemas,
porque todos que eu amei foram embora,
todos os planos foram sabotados,
todos os prazeres foram proibidos
e todos os minutos entregados
às traças do medo.
E não há certezas nem perspectiva
que possam reanimar meu corpo fragilizado
e devolver-me o motivo de lutar tanto...
...
É... quase chego ao fim do poema
e ainda não sei chorar sozinha...
muitas lágrimas entaladas em minha garganta,
não consigo chorar... nem sorrir.
Talvez sorrir, sim, porque consigo fingir,
sou atriz e bailarina nesse palco azul,
azul de luz divina,
de dedos quebrados,
joelhos roxos e cabelos despenteados.
Ajuda-me, alma,
principalmente se és penada,
que as tuas penas são, ao menos, dolorosas,
não são vazias como a minha
de viver sem sangue e sem abrigo,
sem abraço nem carinho,
sem amor e sem desejo,
sem certeza e sem caminho.
Aceitaria, com firme calma,
o sol, o pouco tempo, as dificuldades,
o sono, a saudade, a fome,
as incertezas, o trabalho...
se dessem-me, ao menos, companhia.
Sou, ainda, ser humano somente,
tenho minha necessidade e meu desejo...
mas ninguém a quem amar e conhecer.
Maldita tarde sombria,
maldita cafua impregnada de solidão...