TONS DE AZUL
TONS DE AZUL I
Em tons de azul, elevo minha lembrança:
não sei até que páramos alcança.
Em tons de anil, eu beijo sem tardança
o intimorato destino da esperança.
Em tons de azul, elevo meu passado:
não sei para que páramos alçado,
não sei para que tons determinado,
entre a turquesa e o ciano desfraldado.
Meu coração elevo, em azul pavão,
não pelo orgulho que tenha de minha ação,
nem pela lenda que exala meu pulmão,
mas elevo minha alma em azul celeste,
que minha saudade sempiterna investe,
ao se ocultar o sol no azul do oeste.
TONS DE AZUL II
Não sei até que páramos alcança
esta lembrança que de azul pintei,
não sei se apenas eu me apresentei
perante o linho da tela inda em criança
e usei meus cabelos, sem tardança,
como pincel com o qual me retratei,
sobre a lisura de quando me deitei,
monocromático em minha expectança.
Depois... o tempo deu-me novas cores,
pintei meus medos, meus ódios, meus amores,
usei a barba como meu pincel.
E agora... só percebo tons de gris,
nessa pintura que na vida fiz,
com raros fios azuis ou cor de mel.
TONS DE AZUL III
Em tons de azul eu beijo, sem tardança,
a fímbria dessa aurora matutina:
o marinho, a pouco e pouco, se declina,
enquanto o azul celeste, uma criança,
ingênua ainda, delicada e mansa,
da poeira ignorante e da malsina,
começa a desdobrar-se, a luz divina
a encher-lhe os cabelos de esperança.
Essa bainha pouco a pouco aumenta,
mesclada mais ao rosa do que ao ouro,
inocente da chuva nebulosa...
E então minhalma mais azul frequenta,
também aos poucos, mostrando o mundo louro,
enquanto o Sol com a Terra se desposa.
TONS DE AZUL IV
O intimorato destino da esperança
eu vejo em tons de azul, no teu vestido.
Azul o teu sorriso de incontido,
azul o teu olhar quase criança...
Vejo teus lábios, portal de minha bonança,
pintalgados de azul do céu retido.
Dois pássaros teus lábios sem sentido,
senão o que meu rosto mais alcança.
Vejo teu rosto azul, mas é memória:
tuas nuances sempre foram mais carnais.
O meu pincel é o da imaginação,
que te compõe, nos píncaros da glória.
Rosto pintado de velhos carnavais,
qual purpurina de minha exaltação...
TONS DE AZUL V
Em tons de azul elevo meu passado;
vejo teu rosto nesse azul, que a aurora
desfaz, aurifulgente, nessa hora
em que o fim de cada noite é revelado.
Teu rosto se desfaz, nesse estrelado
fulgor de toga aberta, sem demora.
A luz te apaga, luar do meu outrora,
quando o pendão do sol é desfraldado.
Porque só nos meus sonhos permaneces
e a própria melodia de tua voz
é emudecida no coral dos pios...
Ai, como odeio das aves essas preces!
Cada uma delas um pequeno algoz,
apagando tua lembrança em cantos frios.
TONS DE AZUL VI
Não sei para que píncaros alçado
revolve o imaginar do devaneio.
Em toda a criação, vem de permeio
o perfume esquecido do passado.
Eu lembro o teu olhar acidulado:
anéis de ouro sobre o verde anseio.
Carinho ainda nesse rosto leio,
por mais que faça parte do olvidado.
Mas quando o azul da noite é derrotado
pelo mais claro azul de cada dia,
eu vejo meu amor nele enrolado.
Durante o dia de emoção vazia,
no trabalho o coração emaranhado
mal consegue te amar quanto queria!
TONS DE AZUL VII
Não sei para que tons determinado
foi meu destino, em fúlgida harmonia;
Eu penso em ti de noite e em pleno dia,
quando me bate o coração descompassado.
Fantasma de ilusão, sonho espelhado,
um crocitar do corvo que assistia
o derradeiro instante em que te via,
antes que fosses, inteira, de meu fado.
Escondida no ataúde, envernizado,
a tampa aferrolhada, já sem ar,
sou triste vítima da imaginação,
que me recuso a usar, desapontado,
porque essa imagem que cria meu olhar
superpõe-se ao retrato da ilusão.
TONS DE AZUL VIII
Entre a turquesa e o ciano, desfraldado,
permanece um vitral de porcelana,
retrato desbotado que se espana,
uma vez por semana, com cuidado.
Flores novas, em ritual abandonado,
se depositam, enquanto o sol se empana:
com seus iguais o buquê logo se irmana,
tristes restos de amor despetalado.
Porém no Dia de Finados, eu não vou:
não quero em vivas mulheres esbarrar,
na ladainha repetida a cada ano.
Eu vou só para ti, vou como estou,
em tons de azul tuas cinzas a regar,
enquanto a lousa lentamente espano.
TONS DE AZUL IX
Meu coração elevo em azul-pavão,
desfraldada a bandeira de outro dia.
A vida inteira a meu redor jazia,
indiferente àqueles que se vão.
Já é tempo de aliviar o coração
do peso morto que nos sonhos via:
quem é essa morta que habita minha folia?
De quem essa saudade e essa paixão?
Só imagino qual seja a alma penada
que se albergou em mim, neste momento,
para expressar por mim sua dor passada.
Pobre fantasma de tumba abandonada,
que vive apenas no próprio pensamento,
por suas mãos intangíveis cariciada!...
TONS DE AZUL X
Não pelo orgulho que tenha de minha ação,
não por vaidade de que assim escreva,
não é vanglória que a redigir me leva
e nem saudade de fama ou de ilusão.
Eu me percebo mais o capitão
de um bergantim que a pena assim descreva:
minha energia os tripulantes ceva,
cada um deles me dirige a mão.
E se alternam assim, em suas dolências:
não podem mais em carne se afirmar,
usam a mim para cantar suas mágoas.
E eu deixo que me usem, mil paciências,
sem que tenha temor de seu esgar,
enquanto o barco vai singrando as águas.
TONS DE AZUL XI
Nem pela lenda que exala meu pulmão
eu me deixo levar atrás de ti.
Já não descrevo o passado em que vivi,
bem outra é a agenda desta narração.
Que seja esquizofrênica a paixão!...
Não posso as vozes afirmar que ouvi
e nem sequer meus fantasmas pressenti,
que desejassem tomar-me pela mão...
Eu que a conduzo e o sei perfeitamente.
Mas são essas ideias que me brotam
que, realmente, nem sei de onde é que vêm,
pois me fluem dos dedos, gentilmente,
enquanto cem canetas já se esgotam,
doando a vida e a alma que contêm!...
TONS DE AZUL XII
Mas elevo minha alma em azul celeste,
como uma prece por amor perdido,
nesse ardimento de ilusão despido,
que permanece em fluxo inconteste.
Não sei que inspiração é que me investe:
tantos estilos tenho perseguido,
em milhares de versos esculpido,
gravando o ar que em torno me reveste.
É como se criasse uma armadura
ao derredor de mim, que me recobre,
nesse arcano pendor do verso antigo
e que essa fosse a vera criatura,
ao passo que de mim nada mais sobre
senão a ânsia de me achar contigo.
TONS DE AZUL XIII
Que minha saudade sempiterna investe
um gosto de esplendor azul-marinho,
por toda a relva eu passarei o ancinho,
a recolher os passos que me deste.
Eu guardarei tais pegadas, inconteste,
nas mil gavetas que tenho, em armarinho
que está no coração, bem pequeninho,
mas que um verniz de amor todo reveste.
E guardarei então vestígios leves,
cada qual em gaveta designada:
aqui o murmúrio, ali a respiração;
nestoutra vai saudade, em sonhos breves,
naquela vai suspeita dessangrada:
na mais vazia os beijos da paixão.
TONS DE AZUL XIV
Ao se ocultar o Sol no azul do oeste,
esvaziarei as gavetas no gramado:
fosforescência têm e acidulado
é o sabor que tal lembrança investe.
A meu redor a dança. E se me preste,
também meu passo será deliberado:
véu de suspiros que guardei, cansado,
desde quando me surgiu o Sol no leste.
De novo esses vestígios guardarei,
nessas gavetas de meu coração,
depois de ao por-do-sol os retocar
e juntando tais memórias, reverei,
apesar do esquecimento da paixão,
o quanto de teu rosto recordar...
TONS DE AZUL XV
E assim se esvai a vida, em mil caixinhas
para guardar os sopros de memórias...
São mantidas coesas tais histórias:
se andarem soltas, porém, pobrezinhas,
se perdem pelas matas. Mil espinhas
estão à espreita, de olvidadas glórias,
perfuram meus balões, criam escórias:
de nada servem suas películas fininhas...
Por isso, é bem melhor no coração
conservar bem seguros os momentos
que mais se anseia por entesourar...
Até que chegue a última explosão,
nos tons de azul de vastos sentimentos,
que acabam sempre por se acinzentar...