AZULEJOS NEGROS

AZULEJOS NEGROS I

Por tanta angústia me vi assoberbado,

não minha angústia, mas angústia alheia.

Antes que angústia, a cólera incendeia

as minhas emoções, em fogo alado.

Por certo que já fui atribulado,

mas não me deixo embaralhar ao meio

da depressão, nem fico de permeio

a esse baralho atribulado do pecado.

Sou meio indiferente ao mal da vida,

não me deixo abater, eu sinto é raiva,

antes que angústia, contrário à depressão.

No fundo de minha mente acho guarida

e a angústia alheia me toca, simples laiva,

sem conseguir invadir-me o coração.

AZULEJOS NEGROS II

Conta tuas mágoas e diz-me quantas são,

recebidas do mundo, com certeza:

as mágoas dadas a quem não tem beleza

ou a quem sofre de sensível emoção.

Diz-me tuas mágoas e conta quantas são,

nesse colar de paetês que à mesa

vais rejuntando, na maior presteza,

para enrolar na aorta e ao coração.

Mas enfia-os de tal modo que singelos

sejam os teus rosários enlutados,

para que os outros os vejam e achem belos.

Que tantas mágoas, aos poucos recolhidas,

são os olhos de sonhos deslumbrados,

obras de arte nas páginas das vidas.

AZULEJOS NEGROS III

Tens paetês de vidro aveludado,

ao mesmo tempo nacarado e baço,

ao longo do vestido marchetado,

olhares atraindo em estranho laço...

Quando eu os vejo, presos ao regaço,

esses vidrilhos de esplendor fanado,

quase me sinto a percorrer o espaço

que me separa de teu seio aperolado.

Queria assim tocá-los, sem reservas,

esses enfeites nas orlas do vestido,

depois o pano e, através dele, o colo.

Queria que os tesouros que conservas

meus se tornassem e fosse tal tecido

solto a teus pés, lançado sobre o solo.

AZULEJOS NEGROS IV

Os deuses brancos, sentados na montanha,

me encaram com desdém: em vão eu peço

e faço sacrifícios; libações não meço

por sua indiferença quebrantar também.

E nem sequer a revolta mais estranha

parece que os abala... No começo

cheguei até a pensar que meu tropeço

era fruto de castigo ou pura manha.

Fui sobre os montes a enfrentar os deuses:

pois que me destruíssem! Mas resposta

queria ter das bocas divinais...

Lá estavam eles, imóveis, sem adeuses,

eram só estátuas a quem nada desgosta,

sentados mudos em tronos imperiais...

AZULEJOS NEGROS V (28-3-08)

Os dias rolam, na praia de minha vida,

como cavalos que sobem desde o mar.

Posêidon, que os criou, sabe orientar

esses dias pela senda pretendida...

As areias se ensopam, dão guarida

a imensa multidão, a labutar.

Os passos dos humanos a apisoar:

vinho da morte em ânfora partida...

Os cascos dos cavalos marcas deixam

nas areias do tempo, de encharcadas

e os dias ficam presos em torrões...

Mas os ventos, que do úmido se queixam,

espalham as areias, ressecadas,

enquanto os anos se vão, em borbotões!

AZULEJOS NEGROS VI

Foste a última esperança de minha vida,

pois nunca mais retornarei a tê-las:

as décadas à frente, posso vê-las

e sei o que me aguarda à despedida.

Trabalho enquanto a força for retida

para gastar com os outros. A escorrê-las,

verei por entre os dedos bagatelas,

todas ganhas com esforço e dor contida.

Pago impostos e taxas, parasitas

que se achegam e devoram. Para mim

não existe recompensa em longos dias.

Perdida assim a esperança que concitas,

me resta apenas permanecer assim,

a trabalhar, indiferente às agonias...

AZULEJOS NEGROS VII

Para o reino dos sonhos, sou empurrado

pela mão de um gigante, minha cabeça

afogada em pesadelos; e então desço,

sobre mim mesmo, em onírico pecado.

Para o reino dos sonhos, sou jogado,

a cada vez que meu amor esqueço,

de modo tal que a vida permaneça

entre visões e agouros; e atribulado

me seja o espírito, por ilusões noturnas.

Mas meu tempo de sono é tão pequeno,

que pouco mais comporta de permeio

que um vago torpor, lâmias soturnas,

que me devoram e enchem de veneno,

enquanto oscilo entre sonho e devaneio.

AZULEJOS NEGROS VIII

Nesse reino de sonhos, sou mantido,

totalmente rebelde à realidade.

Eu sinto a diferença da verdade

que em mim existe e por que sou contido.

Longe dos sonhos, lanço o meu balido,

como cordeiro que ao sacrifício nade.

O que vejo ao redor e que me invade

é o véu de sangue de um punhal comprido.

Eu me percebo assim como holocausto,

com libélulas somente alimentado,

forçado a mastigar moscas-dragão,

absorvendo a quitina a cada hausto,

por élitros somente transportado

para cenários que nem sei onde é que estão.

AZULEJOS NEGROS IX

Só me parece que a verdade esmaga:

talvez eu tenha a algum deus incomodado

ao conceber qualquer desígnio encantado:

se flutuei a seu redor, lançou-me praga

e, com um golpe, em rapidez de adaga,

esfacelou-me contra o muro ao lado,

como se o sangue divino por roubado

fosse meu alvo. E a alma inteira alaga,

escorrendo pelo brilho do azulejo:

tornei-me renda e enfeite nesse instante,

apenas um relevo em ostentação.

Não sei se limparão o feroz beijo

que me deixou grudado, mas pensante,

nessa chapa de argila da ilusão.

AZULEJOS NEGROS X

Esmagado no azulejo, eventualmente,

oscilo apenas ao sabor do vento:

fui instalado assim nesse momento,

bidimensional apenas e impotente.

Não mais existe para mim a enchente

de dimensões melífluas, o alimento

do tecido dos sonhos, julgamento

de quem se esconde do mundo, gentilmente.

Fui esmagado em presente realidade

a que não pertencia e nem castigo

recebi por pecado ou feia ação.

Fui somente um importuno sem maldade,

que não sabia qual dom tinha consigo,

antes de ver perdida a exaltação.

AZULEJOS NEGROS XI

Eu sou somente adorno do azulejo

contra o qual fui lançado, estranho friso,

uma excrescência nesse plano liso,

sou libélula de prata, sou desejo.

Não posso observar-me e não me vejo

como pareço a alheios olhos, nem se riso

desperta o meu aspecto, neste inciso

decreto impuro com que a mim mesmo aleijo.

O fato é que me prendo à realidade

que eu mesmo criei ao esvaziar-me:

todo este mundo são restos do que sou.

Um azulejo negro, na verdade,

salvo na linfa ainda a desmanchar-me,

criando rios e vales aonde estou.

AZULEJOS NEGROS XII

E vejo assim que a angústia é fantasia:

o azulejo sou eu e a angústia é alheia,

essa amargura feroz que me incendeia,

mais um fantasma que minha mente cria.

Na superfície plana em que jazia,

esta minha carne, inexistente e feia,

do mundo liso e puro que me enleia

é só um vidrilho e a luz que refletia,

como célula singela em um painel,

é a permanência sobre essa lisura,

mais aspereza que refletor de luz...

Sou um borrão da parede, pobre gel,

já congelado além de toda a cura,

de asas abertas a arremedar a cruz...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 15/02/2011
Código do texto: T2793013
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