O BENGALEIRO
José António Gonçalves
Ao fim das escadas sou eu
o bengaleiro, com os sobretudos,
os chapéus, o lento desfiar dos dias
sobre o destino dos meus passos.
Sou eu, o bengaleiro, a cerimónia
da presença do móvel, a luz
que lhe bate sobre um espelho
por quebrar e dois guarda-chuvas
a lhe fazerem de sentinelas. Sou eu.
Olhando bem, no passado aconteceu-me
ter visitado outras casas, recebido
tremendos elogios, aguentado o peso leve
de verdadeiras bengalas, participado
nas festas ao som de violinos e de trompetes.
Depois perdi o verniz, ganhei pó, verti
lágrimas de sangue, com o tempo, a idade.
Estou combalido, próprio para as tristes viagens
da saudade. Basta que aconteça uma morte
e lá vou eu. Não sei o que é o silêncio,
o cheiro das tintas frescas, de um lar novo.
Enquanto por cá estiver, serei sempre
o companheiro de fantasmas do meu universo
paralelo, com os nós da madeira à mostra
e uma recordação de sorrisos infantis
ainda impregnada nos meus reflexos.
Penso às vezes no inverno. Na remota
possibilidade de realizar uma última
função. Espero pelo frio, numa residência
com lareira. Sonho com a ausência
de um aquecedor. Esfrego-me junto às portas,
logo que chego, no movimento das mudanças,
só para compor o retrato. Aprecio todos os rostos.
Imagino as noites brancas, na no gelo da Sibéria.
Ambiciono a missão do calor, o efeito mágico,
azul, das chamas. Com flores frescas a saltitar
dos ganchos, por entre uma estola e um gorro,
não deixarei perder essa ocasião derradeira
de alegria. Separar-me-ão em tábuas finas
e dar-me-ão o meu verdadeiro papel, no palco
da minha despedida. Será um acto de amor;
entrarei em brasa, em dramática combustão,
mas morrerei feliz, nos braços das chamas
e, de mim, ficará o espelho, com as minhas
loucas lembranças. Era um bengaleiro, irão dizer,
mas parecia ter, como poucos, um coração
puro, tão transparente como o das crianças.
José António Gonçalves
(A Poesia dos Calendários de 15.02.05)
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