AS MARCAÇÕES DA VIDA
José António Gonçalves
onde estão as marcações de toda a vida
meu amor,
os ritmos das músicas dançadas,
as luzes das avenidas, a escuridão dos becos,
o cantar dos pássaros nocturnos, as cartas
que o tempo não deixava morrer,
as insónias coleccionadas de saudade e ânsias
no alvorecer das madrugadas?
procura-me algumas cicatrizes nos baús do sótão,
acorda a poeira adormecida sobre os dias de ontem
e vem sentar-te à varanda
embrulhar essas recordações
na brisa da tarde.
conta-me tudo de novo, põe a mão no meu peito
e afiança-me, confessa-me, revela-me
se o meu coração ainda arde.
não escondas nada enquanto falas e fixas
a linha mais distante do horizonte de água e sal.
para lá só há bruma encegueirando adamastores,
barcos à deriva por precipícios e ondas alterosas.
vê se me encontras nas gavetas da cómoda o postal
que te enviei de Praga, com Kafka a receber flores
enquanto ele só pensava nos espinhos das rosas.
a decisão é tua. porém, se esquecermos as feridas,
podemos apenas ficar aqui, em silêncio, com o vento
a lamber-nos os olhos, contando os crepúsculos
e escutando as aves arrolhando nas árvores,
esperando pelo acender das lâmpadas nas casas
e pelo apitar das partidas dos navios.
se nos abraçarmos assim ganharemos asas
e saberemos resistir a todas as tempestades,
às quedas das folhas nos calendários,
ao medo da noite que vem amanhã
disfarçado de calor
no coração dos estios.
dá-me a mão e aperta a minha.
aconchega-te como as andorinhas
no abafo dos seus ninhos.
deixa-me ler mais essa marcação
que tens a nascer, viva, sobre a pele:
aí diz que nunca voarás sozinha.
pois não sabemos voar sozinhos.
JOSÉ ANTÓNIO GONÇALVES
(Funchal.10.07.04.inédito)
http://members.netmadeira.com/jagoncalves/