A CIDADE DA FELICIDADE OFUSCANTE
não há para onde fugir
não há nenhum vão, nenhuma fresta
nada há nesta cidade para abrigar
a dor do desgraçado
tudo nesta cidade foi projetado
para a alegria, a quermesse, o júbilo
tudo nesta cidade foi pensado
milimetricamente pensado
para o festejo coletivo
para o louvor da espécie
tudo nesta cidade favorece
o bom pagador de impostos
o cidadão que reza missa, que reza cartilha
que reza em francês suas preces
para altivos santos italianos.
as árvores desta cidade são frondosas
e protegem o filantropo, o maçom, o engenheiro
suas folhas não caem sem propósito
não são atiçadas pelo opróbrio do vagabundo
não são sacudidas pela lepra do endividado
esta cidade não abraça em seu peito
os desvalidos, os desafortunados, os inviáveis
lázaro seria mil vezes expulso para outras freguesias
nesta cidade é servido aos olfatos
o nobre odor da justiça
o nobre odor da paz
o nobre odor da benfeitoria
não há para onde fugir
não há um canto onde um homem
possa chorar e confessar sua derrota
não há para onde escapar da euforia
da estranha procissão dos contentes
não há tempo para contar
a história das meretrizes e suas feridas
não há ouvido para se chegar
ao causo do mendigo e sua corte de cães
não há arauto para anunciar
os loucos e seu entretenimento desconfortável
não há sino para repicar
para os incrédulos e suas profecias hereges
a cidade não pára
seus operários têm pressa e lançam massa
lançam tijolos
lançam suor
lançam suas esperanças
e são felizes, são completos
sobre eles resplandece ao meio dia o sol da justiça
seus operários têm fome
mas a fome do patrão come a sua fome
há mais pressa na fome do patrão
há mais verdade na fome do patrão
não há pontes ou viadutos
para servir de hotel aos moradores de rua
não há piedade ou compreensão
nem ao menos compreensão antropológica
no coração da sociedade de bem
para a vida dos desgarrados, dos andarilhos, dos pedintes
não há muro das lamentações nesta cidade
há apenas o grande arco do triunfo
o portal de boas vindas
o cristo de cimento incansavelmente a abençoar
não há espaço para o desocupado
para o vagabundo
não há necessidade do poeta e da bailarina
não há dor nesta cidade
há apenas, e como uma crua verdade,
a felicidade obediente às leis municipais