O Mecânico e o Vagabundo
Acordo pela manhã me sentindo
moído, fraco, cansado, irritadiço
e me forço a levantar da cama após
resmungar mil palavrões pro despertador.
Vejo um pouco de derrota no meu olhar
enquanto espremo o último filete
do último tubo de pasta de dente
que promete em vão clarear meu sorriso amarelo.
Visto as calças manchadas de graxa
há uma semana suportando o meu suor
torrencial do verão sob os automóveis
defeituosos do bairro.
No caminho até a padaria
eu me encontro com ele
sentado na calçada, fumando e
alisando um gato preto.
Ele sopra a fumaça pro céu azul
e retira algumas remelas e
o gato preto roça em suas
pernas que estão de fora.
Volto e tomo o café da manhã
e me coloco a desmontar o motor
daquela Kombi que já passou por
todos os mecânicos da região.
E ele entra em casa
pega um violão e fica tocando
Legião, Nirvana, Raul
Paul, Paralamas e Red Hot.
Enquanto eu prendo o dedo na morsa
enquanto o cárter vaza no meu olho
enquanto o alarme do Escort
dispara de forma enlouquecedora.
Na hora do almoço, com o sol a pino
vou até a padaria comprar uma Coca-Cola
(da garrafa retornável) e ele está deitado
numa rede, à sombra, dischavando algo.
Almoço ovo frito - 1 ovo frito
com as raspas do arroz
de ontem e com o que sobrou
do feijão - também de ontem.
E volto pra encarar a bomba d'água
da Parati do Sidnei com o sol
jogando seus raios de fogo na minha
cabeça desprotegida.
E ele passa correndo na rua
atrás de uma bola junto com
as crianças que estão gozando
das férias escolares.
Encerro a labuta do dia entregando
a Brasília do Wagner na casa dele
e volto à pé com um cheque no bolso
que suspeito ser sem fundo.
E ele está na porta da casa dele
recostado na parede com um copo americano
de cerveja em uma mão e um
cigarrinho de maconha na outra.
Tomo um banho e é no banho que
eu começo a sentir a ardência
das horas exposto ao sol e
das feridas abertas em chapas enferrujadas.
E não há uma mulher para me fazer uma
massagem ou me contar o resumo
da novela ou me falar da vida
da vizinha que comprou um carro novo.
E no portão dele as adolescentes
roqueirinhas aparecem sempre com uma
garrafa de vinho e ficam encantadas enquanto
ele toca e canta "Polly want a cracker".
E enquanto desmaio no sofá pensando no dia
seguinte com o motor da Belina à se fazer
eu me pergunto o que protege, sustenta e
fortalece aquele cabeludo da esquina.
Que dorme tanto quanto seu gato preto
Que goza com as crianças suas férias escolares
Que compra cerveja e vinho e maconha
não fazendo absolutamente nada durante o dia inteiro.
Alguma coisa está errada neste mundo.