NA ESTRADA DE DAMASCO * Pentacríptico

1

No princípio, o verbo quis,

em conjugações obscuras,

ser grão e depois raiz

do chão projectando alturas...

Desnudo, no paraíso,

o par de divina essência

cantava, no tom preciso,

o elogio da indolência.

Do seu cume imperativo

e projectando o perfil

pelas lonjuras de anil,

deus olhava o par cativo.

E, certo da tentação,

provocou a transgressão.

2

Expulso do paraíso

no primeiro alvorecer,

era ainda um improviso

a vida que houve de ser.

Adão pesou, pensativo,

o gesto da divindade

e a condição de ex-cativo,

encontrada a liberdade.

E naquela antemanhã,

que mal podemos supor,

percebeu por que a maçã

tinha um estranho sabor:

o sabor da inteligência

acordando a consciência.

3

Pródiga era a natureza!

Tudo dava, hospitaleira...

Viver era uma beleza,

sem transtorno nem canseira.

Sentia às vezes saudade

do paraíso perdido...

Mas fora a sua vontade:

assim tinha decidido.

Lá, tinha que obedecer,

ser aplicado no estudo

e ouvir e não rebater...

A liberdade era assim:

não se podia ter tudo

dentro ou fora do jardim...

4

Sem armas e sem abrigos,

um ninho nos ramos altos,

prevenia os sobressaltos

dos mais diversos perigos.

Nessa arte da construção

imitou os primos símios,

que eram astutos e exímios,

arquitectos de eleição.

Gozando a paz absoluta,

descobriu ser bom pensar:

e concluiu que uma gruta

era o lar a conquistar,

por ser melhor tal intento

do que viver ao relento.

5

Um dia, o par decidiu

o que há de mais natural:

Eva emprenhou e pariu

o pecado original...

E do seu cálido ninho,

recendendo a puridade,

foi descoberto o caminho

terrestre da humanidade.

E tudo assim sem alarde,

nem hosanas nem prebendas...

Não foi cedo nem foi tarde.

Depois vieram as lendas,

vestindo de cor e rito

o simbolismo do mito.

*

Viana do Alentejo * Évora * Portugal

José Augusto de Carvalho
Enviado por José Augusto de Carvalho em 20/06/2005
Reeditado em 28/07/2018
Código do texto: T26315
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2005. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.