Entre vermes e camélias

Hoje morro

Amanhã me enterram

E assim me fazem como se faz com todo homem da terra:

Esquálida matéria a fenecer ordinariamente

entre vermes e camélias.

Tal como a noite que se rompe!

Tal como a arte que se exprime!

Triste a ter de morrer assim

Sem ao menos ter sabido quem eu era

Vou procurar no silêncio destas horas

tudo aquilo que ora fui e que não era.

A vagar assim irremediavelmente para a estrada do nada

Recordo todo o meu passado escoado

E neste recordar-se sinto a soprar-se em mim algo

Profuso porém necessário.

O passado num passe escorre sobre os confusos

corredores do meu presente

e na minha retina se aloja!

Sinto que o presente me escorre pelos olhos.

Grave, contenho. Mas a luta é desigual.

E luto! Desesperadamente luto

Entre rotinas e tarefas diárias

Entre laudos e arquivos clínicos

Entre porres e turvos edifícios

Entre amigos e públicos devaneios

Luto como a cidade desolada

Ante o massacre do inimigo

Ante o holocausto inevitável... E não obstante... Desisto?

Se lutei, se bradei

Se no intimo dos sonhos fui grande, heróico, poeta,

Em vida, pois, não passei de uma trágica comédia:

submisso, funcionário, quieto.

Se em vida eu fosse ao menos metade do que fui

Por dentro, não seria acaso eu mais interessante?

Em versos quis cantar a vida e tudo que é fruto dela

Mas em vida cantei, porém, o absurdo e a miséria

De um coração alheio a ela.

E na lida da vida, perdi?

Mas foram tantas as alegrias!

Tantas a me sorrirem seu riso!

Tantas a me abrirem as portas,

A convidar-me a entrar no rito, dizendo-me:

Entre!

E entrei:

e amores eu vivi

e amigos eu cantei

e amores vi parti

e logo outros eu ganhei

e entre dezembros e maios e fevereiros amei.

Crédulo no amanhã

Acordei

E no papel desenhei nova camélia.

***

Alex Canuto de Melo

Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 17/11/2010
Código do texto: T2620101
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