ACOSTAMENTO

já, a esta altura, não sofro de amores

tampouco cultivo paixonites e atrações

ando assobiando um fado corta-pulsos

enquanto o semáforo detem os caminhões

todos carregados de soluções diversas

das quais nenhuma me faz sentido

e penso que em todos esses caminhões

tudo tem seu preço e sua nota fiscal

e um dono, talvez anônimo, a esperar

que tudo chegue pontualmente ao destino final

um monte de caixas iguais, sisudamente lacradas

fardos, pacotes, maços, milheiros e tambores

ou seja, tudo que tem valor para alguém

e eu, que já não sofro de amores

e tampouco nutro sentimentos dessa natureza

observo o movimento ao redor das carrocerias

e o monótono vai-e-vem das empilhadeiras

organizando a mercadoria

e múrmurio dos peões sob o sol inclemente

desejando que o anoitecer traga o merecido descanso

forma uma nova língua estranha

nem farsi, nem ídiche, nem árabe, nem esperanto

abafada pelo abrasador meio-dia

já, a esta altura, não sofro de amores

tampouco padeço de saudades

recolho um velho jornal na sarjeta

leio intrigado, na sessão de amenidades

um horóscopo da semana passada

dizendo que aquele dia seria o dia

em que boa coisa me aconteceria

mas como se vê, não aconteceu

então continuo a observar a rodovia

os caminhões, estes não me conhecem

mas eu os conheço

até pelo ruído, quando não estão à vista

um grito gutural rescendendo a óleo diesel

cruza impavidamente a mesma pista

dia após dia

abarrotados de badulaques e miudezas

protegidas por celofanes e isopores

delicadas, limpas, novas e quiçá perfeitas

porém eu, que já não sofro de amores

e tampouco me entrego a certas certezas

finjo estar cego para não perceber a ordem

cada caixa em seu canto contendo seu volume

parecem silenciar para que as outras não acordem