Solilóquio

Parte I

Observo o relógio enfurecido

Fitando-me friamente com um grunhido

Sinto o tempo perpassar o meu toque

Atravessando-me como quem não tem mote...

E eu continuo rindo como quem chora

Abraçando a vida que me deplora!

Não mais temo este pesar perpétuo

Que me contempla com plenos amplexos

Tampouco sinto o sangue na veia

E ainda há quem não creia...

Caminho com passos de embriagado

Que já não reclama carregar este fardo

Sigo cantando como quem não tem voz

Mãos dadas à miséria e ao destino atroz

Escrevo como quem não sabe ler

E lamento a incapacidade em me deter

Mas com tantos relatos, o que posso fazer

Se não apenas me limitar a dizer

Que minha vida se faz num misto

De constante solidão, arte e riso...

II

A solidão, pelo menos, é sincera

Adaptei-me a seu olhar de megera

Penso que ela até me quer bem

Sempre ao meu lado, aqui e além

Manuseando a ironia e causando estardalhaço

Mesmo quando o silêncio rejeita o afago

Do ósculo à cusparada, ela contamina

Usufrui de blasfêmias e, mesmo assim, me fascina!

Sei que quando pelos vermes eu for dilacerada

Ali ela estará, com um sorriso de estagnada...

III

A arte pode ser sensível, arrebatadora e mordaz

Carrega a essência da sedução que me apraz

Do sete ao nove, do mito à catarse

Do alicerce prelúdio às imagens de Marte

A palheta incerta e até mesmo incolor

A melodia êxtase sobre dor e amor...

A entrelinha audaciosa, o movimento serpentino

Carícia invisível ao sentido libertino

Prazer silencioso envolto em devoção

Orgasmo insalubre, tremor do cérebro em erupção

Contemplação ávida do ápice criador

Superioridade transcendental de um universo transgressor...

IV

O riso se aproxima isento de esplendor

Me assaltando absoluto e sem pudor

Fragmenta o bom senso e a ilusória estabilidade

Na constante intenção de satirizar a realidade

Sussurra ironias quando lhe parece conveniente

Transmitindo mórbido pesar de mente em mente

E quando a solidão me empresta sua loucura

Cambaleio enquanto a escuridão me perfura

E tudo acaba virando questão de interpretação

Afinal, no fundo, o riso é um detalhe da perdição

Gargalhada monótona de rejeição ao padrão...

E eu contemplo o universo como quem respira o nada

Indiferente e serena, aguardo o momento da última cartada

Com o baralho incompleto nas mãos, deixo o tempo perpassar o meu toque

Enquanto minha vida segue na profusão do meu mote: Solidão, Arte e Riso...