SUSPIRO PELAS CASAS
José António Gonçalves
Onde hoje há auto-estradas
dantes moravam homens
e havia figueiras
e nespereiras em flor.
Havia recantos de sombras
e cheiro a terra
em redor das casas.
Havia amor. Anjos. Asas. Presépios.
Sabia-se à distância das notícias
novas da guerra
em territórios ultramarinos
e escutava-se telefonia à noitinha
depois da reza do terço,
do lavar dos dentes,
do uso do penico,
do beijinho da mãe e dos trabalhos
da escola, três cópias, um ditado, quatro
somas e duas contas para dividir,
sem direito a ajudar os irmãos
mais pequeninos.
Dantes havia o candeeiro a petróleo,
o calendário da colgate, a vigília
do vizinho moribundo. A igreja fechava
muito tarde e pululava de beatas.
Em segredo os rapazes falavam
de poder, da reforma agrária, do preço
do pão e da ânsia de liberdade.
Depois numa manhã de capitães
com soldados vestidos de cravos,
entrou a revolução pelas portas do país.
Cantavam democracia, igualdade
para todos e alguma coisa aconteceu
sem interferência de cardeais,
de professores, regedores,
dos curas da paróquia
ou de trovoadas no céu.
Chegaram as obras e as bandeiras,
os caminhos saltaram de sítio, a luz
acendeu por si, a televisão trouxe
imagens a preto e branco
que pintaram a cores.
O amor ficou na rua
e as auto-estradas entraram no lugar
onde dantes moravam os homens.
Mudaram os feriados, as horas, as pontes
e as paisagens. Agora tenho saudades
dos presépios. Dos Anjos. Das asas.
Cansei-me das liberdades
e já suspiro pelas casas.
(inédito. 21.2.04)