CINE SACI: "LUSITÂNIA"
CINE SACI : “LUSITÂNIA”
À Maria Lúcia de Almeida Marques.
Range-range...
Estilhaços, cacos de vidros espalhados sobre o chão do salão.
Assino a cristaleira,
assinatura de infância.
O ruído ainda cristalino arranha minha memória,
e meus ouvidos põem-se atentos aos sons do-presente-do-passado,
do futuro anterior, numa pequena cidadela do interior.
Hotel, Hotel Municipal...
Lugar de delícias,
ali planto as raízes da aurora da minha vida.
Range a ‘porta vaivém’ na entrada do hotel,
e no ‘vaivém’ do hall, avisto o casal shakespeariano do local.
_ Titia, titia! Quebrou... a cristaleira do vovô!
E o abraço amoroso...
lembro o cheiro da pele, o cheiro d’alma da titia.
Maria dentre outras tantas Marias a preparar
o almoço dos hóspedes.
Ao fundo do salão principal, por meio da fresta de uma pequenina porta, mal se avista o enorme fogão à lenha;
porta de oratório,
pela qual transitam mãos, talheres e iguarias,
o limiar que separa o aroma da cozinha
do perfume das madeiras de lei,
o qual invade o amplo e longo salão do hotel.
Perfume de ervas, condimentos... iguarias sem igual da Senhora das Especiarias.
_ Titia, quando o vovô retornará?
_ Em breve, em breve...
À esquerda, após o hall de entrada, a escrivaninha do vovô -
caixeiro-viajante: porta-chapéus, porta-cigarros, porta-cartões...
Ao lado, um longo corredor não-lumiar,
limiar entre o familiar e o estranho,
e uma fileira das portas: uma, duas, três...
os aposentos do hotel.
_Apressa-te criança, porque a titia precisa preparar o almoço para os novos hóspedes! Vamos até a horta!
Deixamos o hotel...
Ruas encantadas, passagens... Praça Central, Igreja do Senhor Bom Jesus, jardins, cinema... “O Pequeno Polegar”, no Cine Saci, todo coral.
Aproximamo-nos da horta.
Entre verdes passagens, mil verdes, raízes, poços d’água, poços fundos ameaçadores
à beira dos meus pés. Cai, não-cai... queda?!
_Titia, tenho medo!
_ Não se preocupe, ampare-te em mim.
E a encomenda chega a seu fim.
Sob um céu de tantos futuros, de sabores e de dissabores - presentes do Céu?! -, o retorno ao hotel.
Já próximos, contemplo a rua-ladeira-acima que nos leva até a Santa,
em seguida, ao topo do Morro Bom Jesus, onde se alcança o céu... Orações: “Santa Maria, Mãe de Deus...”.
Recuso o hall. Outro local, e invado o hotel por outros caminhos, pelo quintal...
_ Bob, Gonçalo! cão e gato...
dezenas de patos, patinhos, galinhas, franguinhos, perus, peruas... gluglu; cabritos e filhotes.
Mais adiante, o exuberante pomar: frutos, flores, tapete de folhas mortas, plantas rasteiras,
ervas, aromas, cheiros, cheiro-verde, salsas...
O som das Valsas!
_Vovô!
Um poço, ao centro.
O tom dos Fados!
_Vovô!
Dali, contemplo uma ampla janela, rente ao chão, revestida de tela,
uma tela quadriculando a história da família.
Imagens do vovô à cabeceira da mesa - casa de mesa
farta -, distribuindo requintes,
em sotaque e fineza
lusitanos,
em bom português,
cachimbando cravo-canela e degustando, ao som da cantora de fados,
entre as delícias das
uvas e dos vinhos rubro-tintos, vinho da quinta,
bebida dos deuses.
O aroma do fumo, de essências portuguesas... alecrim, laranjeira, jasmim,
meu olfato percebe os odores,
todo o hotel recende o Cheiro bom das Índias Orientais, assemelhando-se a um navio mercante... sem porto. Estertores...
Especiarias... canela, cravo, pimenta, pedrarias sem fim,
pedras preciosas... Serra de Dourado, Boa Esperança, Tijuco Preto e Bonito.
_ Terra à vista, d. Manoel! primeira lição escolar.
Pelas linhas da Paulista, Lusitânia desbravando sertões paulistas,
e o trenzinho corta capim...
Uma batalha de gritos!
Chegada: gritos de alegria.
Partida: gritos de dor d’amor.
_ Adeus, titia,
adeus, vovô!
Ruídos... ruído áspero, trem de ferro,
e o trenzinho caipira range-range, recorta capins,
desenhando riscos em minha memória... cercas sertanejas, brejos ...
Range-range o trem da vida,
partindo em estilhaços os sonhos sem fins.
PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS
Campinas, é inverno de 2006.