Poemas Cotidianos 3
EU E ALICE
Conheci Alice no País das Maravilhas
Cercado por ilhas de desejos
E necessidades.
Alice e eu
Éramos como Deus
A ocultar-Se de outros
Atrás de escuros óculos
Escrotos.
Mas por que olhar pela janela
Dos olhos dela
E não poder entrar
(Bem devagar)
A não machucar-lhe o coração
Esperançoso?
Por que tapar as narinas
A evitar entrar o mar
Em meu coração lodoso?
Por que evitar os peixes
Quando somos anzóis,
Feixes que arrastam aos móis
As iscas pro coração da serpente?
Calma, minha gente;
O coração tem razões que a razão conhece.
Sinta só, faça uma prece:
E não me faça esquecer Alice, então,
Por quem ainda sou capaz de certa doidice
Só pra alegrar meu coração.
*
DÚVIDA
Quem duvidar
Dará um salto no ar
Pra chegar
A nenhum lugar.
A Dúvida
Duvida dela mesma, morre,
E então só lhe resta certeza.
*
E EM VENEZA...
...Rolas e pombas
Fecundam óvulos
Sobre as gôndolas.
*
FRANCISCO:
Obrigado pelos parabéns antecipados
Pela completude dos rodopios que,
Provindos de passados,
Fez em anos dourados
Gerar entre nós amigos, tarados,
Irmãos, amores e rios.
Um poema é sempre bom
Para esquentar os frios.
Em todos os percalços
Grandes abraços.
*
GEMINIANO
Meu inimigo
Compartilhou de meu umbigo
E de meus sorrisos
No interior de minha mãe.
E ao deixarmos o vão do Paraíso,
Ao adentrarmos definitivos
Neste mundo-cão,
Meu irmão veio comigo
A mexer com meus juízos
Pra tirar-me da prisão.
“Só Jesus salva irmão”,
Disse-lhe eu por fora
Das grades de seu coração,
A pretender dar-lhe os códigos
Da libertação.
Mas cá comigo e meu botão
Eu sabia, antes de Salomão,
Que era práxis irmão matar irmão.
E ele me perseguia como se eu fosse o ladrão
Que lhe tivera roubado uma mulher outro dia;
E mesmo que eu lhe jurasse
Usando de minhas artes
A convencê-lo, destarte,
Que gosto mesmo é de Maria.
Mas, como tenho dito,
Ele é meu irmão-inimigo
Desde o céu até o umbigo.
Não fosse também verdadeiro amigo
Já teria acabado comigo.
*
MORALISTA
Feia é mulher desmascarada,
Rejeitada pela beleza-farsa descoberta pelo cego,
Que a toca de touca, retoca e rejeita a safada,
Ao descobrir bem feita feiúra de sua ex-mulher amada.
Feia é a estrela enevoada pela inveja desgraçada,
Como a córnea da velha empregada encarquilhada
Que mais nada faz
A não ser reclamar que é maltratada.
Feio é quando vomitamos à noite
Quando não há mais nada o que por para fora,
E mesmo assim tornamos a vomitar
Até que chegue nossa hora.
Feio é tudo que não é bonito:
Uma gengiva sem dente, uma tripa, um bandido,
Uma vazia garrafa de aguardente, a pobreza da mente,
Uma ripa, um doente, uma ponte caída sobre a guarita
Do soldado que cuidava da gente.
Feio é um vampiro a se passar por crente,
Um soco nos dentes da frente,
Uma mentira cabeluda de franja, indecente,
Uma panela ensebada, feridas na pele,
Uma estante sem livros, um planeta sem vivos,
Um assassino contente.
Feio é passar-se por mudo quando se é fluente,
É se mostrar verdadeiro pra enganar descrente,
Careca atrás de comprar um pente
E primo passar-se por atraente pra comer a prima
Ou outro parente da gente.
E a coisa toda é quente,
Porque feio é tudo isso e muito mais, minha gente:
Dizem de uma moça a passar-se por rapaz
E alguém dizer que “tanto faz”,
Que é sempre bom demais
Quer receber pela frente ou por trás.
*
FELICIDADE
Minha felicidade está triste
E eu aqui, com o dedo em riste,
A impedir sorrisos e escárnios.
Minha felicidade está triste porque ela sabe
Que não te agradou tanto o que viste
Neste mundo-cão de salafrários.
Está triste porque o avião explodiu
E levou o filho da puta que não pariu o Salvador
Que vinha do Oriente em seu ventre,
Puxando um bocado de gente pra renascer por aqui.
Minha felicidade está triste porque se foi cedo Mayra
Levando sua ira sem nos deixar sorrir.
Dente por dente, olho por olho estou triste.
Mas eis que surge uma palhaça
Pra dizer que da lágrima faz graça,
E agora estou eu pela cidade
Em plena praça,
A buscar na dor felicidade.
Mas, a depender de te a ser feliz em comunhão,
Prefiro ser feliz com Abraão, que desejou serem as cousas
Como são.
*
FLOR
Uma flor cabeluda, cheirosa, felpuda,
Fez-me divagar a pretender poder presenteá-la
O mar.
Mar que não é meu nem teu,
E que mesmo assim eu a daria
Pra colher tal flor por um só dia.
Mas ela é escorregadia, fugidia...
Uns céus de estrelas lhe oferecem,
Mas eu direi dele a esmo
Onde seu fim e onde o seu começo,
Para, assim,
Adentrar em mim mesmo.
Abre-te a m’inteira, pois,
Até a beira do abismo para onde tendo,
Por seguir-te até os confins de meu intento,
Até o fim do mundo que gira em torno de teu umbigo,
A sem querer fazer nova vida contigo.
Para mim és de toda cor, flor,
Por isso mereço-te toda desnuda
A por mim se enfeitar de amor.
*
INVERNO
O inverno
É um homem de terno,
Sobretudo e nada
A esconder a luz do dia
À beleza da amada Primavera,
Uma quimera de sua autoria.
No inverno teus pássaros evitam sair
A perambular por aí em busca de alimento,
E outros bichos, sedentos, temendo frios ventos,
Esperam outro porvir.
Mas logo o inverno desfaz-se em chuva a fio.
Estação da uva e do gelo no cio a provocar icebergs, calafrios,
O inverno verte certezas em desafios;
É frio como meu tio morto,
Torturado pelo gelo de seu coração
Vazio;
Frio como somente o inferno poderia
Ser e não ser
A fazer você pensar que é quente
O degelo da gente
Quando morrer nos liberta
Para sempre.
Fria é a morte devassa;
A Vida é carvão em brasa.
*
LER (Resposta a uma mãe desesperada)
Por que meu filho chora tanto ao ler?
Porque ler faz sorrir, chorar,
Constrói mundos e fundos nos ocos dos mundos,
Eleva-nos ao ar quando soletramos a palavra
VOAR.
Assim, ler é dormir a morrer um pouco com Shakespeare,
E então saber como é difícil vir
A perguntar ser ou não ser
Pra saber quem se foi ou aonde ir.
Ler nos faz divagar a sorrir da piada
Que o pássaro que veio do nada cantou
Pra dizer das coisas de Nosso Senhor
Ao nos guiar mais serenos
Aos cadafalsos da Paz e do Amor.
Ler é guardar pensa-mentes,
A mentira entre os dentes
Nos guarda-letras da memória
Que incluirá nossa história
No grande Livro da Vida.
Ler é ter guarida em dias de chuva,
E se ver no verão colhendo uva
A correr do siberiano tigre que nos devora.
Ler é estar sempre eterno.
Por isso teu filho chora:
Ler é ser todo o mundo agora.
*
MOSCA SOU
Para Nietzsche e Raul Seixas. Naturalmente.
Gigantesca mosca a planar sobre
O mar da primeira sopa,
Vou ao engano de incultos
Sobre o que verdadeiramente
São e Sou.
E apesar das ostentadas asas,
E de meu pescoço sem osso
E sem gravatas;
E apesar da podridão que causo
(E que me causa),
E de meu falso odor de Madeleine,
Graças ao irônico Voltaire,
Posso adorar o Senhor
Também.
Porque, com ele,
Descobri que tenho uma alma, enfim,
Apesar de toda gosma que sai de mim.
*
GOZO
Havia um latejar de universos-cios
De onde florescia a semente
A inventar nós e laços de fitas
A jogar no inferno o céu da gente.
Meninas bonitas, santas meninas,
Eram então flores em primaveras de outrora,
Sendo a prima Vera a mais desejada
Entre as Rosas que recebi agora.
A Natureza é má, sim, mamãe:
“Matureza” – deveria se chamar,
Por nos fazer desejar deitar com virgens
Antes do jantar.
Lembro daquela vez na sala de estar,
Atrás do sofá,
Onde velhas beatas reclamavam de Deus,
Que tornara ninfetas beija-flores
A roubar-lhes todos os amores.
Ô coisa desatinada perceber quão Deus é traquina
Quando malvada menina!
*
BOCA FECHADA
Boca fechada
Não entra mosquito
Nem pênis torto de tarado
A fazerem engolir as mulheres
O que lhes ordena ordinário
Salafrário soldado.
Boca fechada, meu senhor,
A evitar que saiam dela cobras e lagartos,
A encharcar o mundo de mais ódio,
Sangue e horror.
Mas boca fechada, minha senhora,
Meu senhor,
Tolhe nosso direito de recitar poemas,
Tornar verbo Amor.
Mas como, então,
Abrir a porta novamente
À Berta
Se, na certa,
Ela desertou da dor incerta
Que lhe tirava a paz
A lhe impor dieta de afeto
Pelo senhor?
*
MAIS POESIAS
Mais poesias pra quê, se só estou com saudade
A pretender-me “Poeta” e escrever “poesia”
Pra você?
Sei que gostas,
Como gostas de tudo e nada,
Como gostas de Deusdete,
Aquele poço de pureza safada
Que me trouxestes aqui outro dia
A falar mal da namorada.
Precisamente por isso, camaradas:
Elas não sabem nada a não ser amar-nos;
E, enamoradas, nos livramos dos cornos
E de sermos a antas comparados.
Levanta, deixa de lorota:
Que tudo isso te importa?
Por que remoer esse caso
Quando o melhor será talvez tão ingrato
Quanto ingrato foi barata ter surgido
Do nada
Pela fresta da porta?
Já sei: queres mais poemas
Pra melhorar quizilas de Godzilas
Que te perseguem em sonhos.
Queres mais poesias para parar de quereres
Outros quereres medonhos.
*
MINHA LÍNGUA
Minha língua expressa a língua dos homens,
Dá nomes a coisas sem nomes
Enquanto como a palavra “lua”
A brilhar no céu de minha boca.
Minha língua é muito louca
Mas nada diz de minha sina,
Nem me leva a achar a mina
Onde escondestes sob tua dor
As palavras “paz” e “amor”.
Minha língua é um horror quando quer dizer tudo e eu não,
E então diz a me causar rubor
O que tenho de sim a me revelar então
Nada mais que um demiurgo a urgir em vão
Ser jovem velho senhor.
Quer você goste ou não,
Há amor em meu coração,
Rima em meu poema anão,
Nesse poema que diz de minha língua ferina
A passar-se língua em cima de outra língua
A outra vez evitar a solidão.
E minha língua é lugar onde o Tudo mingua,
Onde o fraco é forte no sul ou no norte,
Aqui ou na China.
Mas só na minha língua
Quando passa, incólume,
Sobre a língua da menina.
*
MULÁ:
A temer nada há
Neste vai-e-vem mundano
Dançando rock, dançando tango,
Um dia teremos de atracar
Num raso rio ou num profundo mar.
No mar de dentro, no mar de fora,
Um dia chegará hora
Da gente também se afogar
Pra saber o que é que há
Do outro lado do mundo,
Do outro lado de Alá:
Se há mesmo ouro ou um Eu profundo
Que nos dirá finalmente o que e quem somos
Ou quem foi que fomos.
E então desvendaremos o mistério
Do Etéreo que nos cerca e nos consome
Do berçário ao cemitério.
*
Somente assim
“Não, sim”.
Somente assim
Responderas se acreditarás
Que, um dia, quase foste Homem,
Sem outro fim.
Ser a fome de saber
É se alimentar da natureza
Do Ser.
A crença está por um fio descascado
A saltar em curtos circuitos
De meu brado.
Compreender é o desafio do século
A saber do que é feita a molécula
E o moléculo,
A transcender dimensão do “acaso saibas”.
Sentir
É a melhor coisa
A fazer
Pra saber daquilo
Que sempre soubéramos ser.
Plotino não é Pilatos.
No fim, dispensarei os meus sapatos altos
Quando for dar os saltos a superar os nãos
A reprimir vir Ser dos céus
Até os chãos.
Por aqui
Nada há por aqui
Que me alegre o coração,
Não há o que fazer, aonde ir,
A não ser esperar a separação.
E enquanto espero
Penso que não te posso possuir,
Como nada possuirei daqui
Ou d’alhures,
Sem que nada possa ter
Também d’algures
De onde, um dia,
Resolvi sumir.
Mas não quero voltar pra lá,
Ou ir pra algum lugar
Onde eu possa descansar
Sem nunca mais em ti
Pensar.
Meu coração é um grande lugar
Onde cabe o mundo inteiro,
E olha que não sou fofoqueiro,
Mas não resisto a te contar.
Meu prezado, venha cá,
Não se assuste meu avô;
Vou lhe dizer a Verdade,
Agüenta as pontas, por favor:
A Coisa toda é mais antiga
Do que eu ou o senhor.
*
Na corda bamba
A corda bamba,
Mas eu não caí ainda.
Talvez não caia, tenha medo da queda
Que me atirará, pouco a pouco,
Onde a Luz, das sombras, fez barata
Nada sensata ao cruzar a sala
Correndo o risco de ser esmagada
Pela sola do sapato da empregada,
Apavorada,
A se perguntar como Deus pôde criar
Tamanha asquerosa depravada.
Kafka não quis ficar comigo nem com a barata,
Nem Krishna, Jesus ou qualquer budista,
Enquanto, depois de nós radioativos,
As baratas não deixarão a Terra
Inerte, empoeirada, imberbe,
E os vermes que vos devorarão
Carregarão para dentro das novas sementes da terra
Outra informação sobre os eras que fôramos,
Outra canção sagrada
A dizer como melhor deverá Ser
A próxima manada.
O movimento Celeste
Movimenta a peste e a fome,
Também de leste a oeste.
E tudo isso por mais que eu deteste
A fazer meu coração brasileiro
Sentir-se em Budapeste.
“Mas e daí, se lá não estará Celeste?” –
Pergunta-se o dependente daquela peste,
Onde se meteu a pensar voltar para o ventre
Que o gerou, mãe do seu amor, irmã de outros soldados,
Tendo a safada feito, de nadas, algos:
Suplícios, prazeres, vidas e mortes,
Viagens astrais, afagos, beijos e cortes,
Olhares atrozes, azares, afagos e sortes,
Bizarros algozes, galãs, padres e dotes.
Lâmpadas, luzes, escuros de postes,
Bocas, seios, sugadas e fortes,
Forrós, foxtrotes, foles e folhas,
Frutos, putos, quadrilhas e bolhas.
Trepadas, comidas, cocadas e queijos,
Dementes, oxentes, baladas e beijos,
Amigos, irmãos... “Tenho tudo”, “tem não”,
Tenho olhos, bocas, ouvidos e mãos.
Trabalho, corrida, infartos, refrãos,
Tem alho, bebida, desejo e tesão,
Marias, morais, limões, lampiões,
Tensões, brigões, facões, capitães.
Tem fugas, maconha, bebida, apagãos,
Tem crente que abafa, confia, se farta...
Tem festas, fogueiras, explosões e balões,
Tem prosas, gostosas, Anas e Marta...
E tudo veio de Celeste:
Um dia, inda mando de volta (pro Céu)
Aquela peste.
Na prisão
Na prisão onde toco um violão
Dois detentos tocam gaitas
A me fazerem pensar em Krishnas
E sirigaitas.
E não é só pra rimar não,
Porque gosto mesmo delas, meu irmão,
Sendo algumas minhas primas, outras não.
Mas ai: Pátrias, Rosas, amores,
Nenhuma delas tem pétalas, são flores,
A receber beija-flores (como eu),
Sedentos de amores.