Poemas Cotidianos
Archidy Picado Filho
CATA-VENTOS
(Para Deus. Por ter-nos permitido inventá-Lo).
Venho de antigos Egitos,
Das sombras, dos infinitos,
Dos tormentos, maremotos,
Cata-ventos,
Em envoltórios de carne e sangue,
Indo e vindo como um bumerangue.
Venho do mangue,
Das quimeras e das esferas flutuantes sobre a água,
Um dos elementos com que me reinvento
No Tempo.
Venho de histórias bem contadas
Sobre profundidades e fachadas,
Da imaginação dos dementes
E das estrelas mais quentes.
Venho como cobras, como gentes...
Depende.
Venho como quem não quer nada porque tem tudo;
Venho como porrada e como escudo.
Venho como o refrão de uma canção sem refrão;
Venho como o sim e como o não.
Venho nu travestido de mim mesmo;
Venho sem cabeça, tronco ou membros,
Desmembrando-me a minha própria presença constante, a tua...
Venho como livros numa estante;
Venho quando quero, mesmo se não quiseres.
Venho porque vir é minha sina;
Como infância, menino e menina.
Venho atrás da fragrância das flores e os odores do esterco.
No caminho à volta,
Não me perco.
*
ARIANO ARMORIAL
(Aos oitenta anos de Ariano Suassuna).
Também neste próximo natal
Vou pensar em ti, Ariano,
Como tenho pensado há anos
Ao ouvir o Armorial.
Lembra-te que há mais oitenta reinos
Ainda a conquistar, Ariano,
E os seios que alimentaram teu olhar imaginário,
Insano, aparecem agora em relevo
Sobre as pedras de teu reino,
De onde medram razão e engano.
Tu és homem do sertão, Ariano,
E não gostas de usar cartão
A te comunicares com Cervantes
Para saber aonde andam
Teus nobres cavaleiro-andantes.
Os maus arianos da história, Ariano,
Estão agora à margem dos tempos:
Foram-se como pó a carregar consigo
Belos anjos barrocos, judeus imprudentes,
A paz da gente, ciganos profanos e serpentes.
Mas teus personagens são eternos:
São santos hereges e mulheres alegres
Ao apanhar dos anos, ao passar dos ternos:
Cavalo cavalgando cavaleiro galopante,
Um mar para um navegante,
Um sítio infinito com luminosas sementes gigantes,
Brilhando a rodopiar errantes
A fazerem voltar visão dos cegos
E tornar mudos falantes.
Não te aflijas Ariano:
Na Vida não há só desenganos
Nem só o palácio suntuoso
Onde primeiro vivestes
Por alguns anos.
Não te aflijas, Ariano:
Não há tantos poetas grandes como tu.
É um engano que vi numa revista Veja
Numa banca no centro de Itú.
Eles fumaram ópio,
Tomaram cerveja
E depois imaginaram como Cristo e tu
Tornaram diamantes pedras de reinos,
Transformam água em suco de caju.
*
DOMINGO
Hoje é domingo,
Embora não seja de ouro meu cachimbo,
Como não foi de ouro-natural o Cálice de Ouro
Do Santo Gral
Para ter sagrado seu sentido
Profundo.
Hoje é domingo em muitas partes do mundo,
E compus a canção de meu destino
Gritando quase mudo no primeiro dia
Da Criação.
Sábado não: dia de descanso do divino,
Ele se abstém, quer grosso ou fino,
De trasbordar suor num homem,
Ser socorro ou hecatombe,
Verter-Se menina ou menino.
Domingo é dia de família: de mãe, pai, filho e filha,
Oásis no deserto da razão, uma ilha no mar revolto
Onde nascem flores de lótus no centro do coração
É domingo quando chega a casa tio-torto
Pra tornar-se irmão em batismo de fogo
A pretende-se vivo estando ainda morto.
Mas domingo é dia de nascer de novo
E saber sentir e apreciar as terças
Desta longa sinfonia inacabada
De estrelas e de tetas a alimentar futuros
Grandes Homens,
Santas e prostitutas safadas
Que vagam por outras casas
Sob o sol dos lobisomens.
Domingo é dia de estafetas
A trazer notícias sobre dias por virem,
Segundas, intenções e incertezas.
E então, sete dias de solidão depois,
Outro domingo virá com Esperança
A banhar-se comigo em chuvas de arroz.
E finalmente estarei feliz de segunda a sábado,
Domingos depois.
*
ACORDAR
O mundo é nada
Quando durmo contrito
Por ter-me esquecido
De dormir contigo.
Estou em lugar nenhum
Quando em sono profundo,
Esquecido do mundo,
De outro porvir.
Fora das eras, vivendo quimeras,
Quando acordar, vou evadir-me daqui.
*
ÀS VEZES SOU
Às vezes desperto em mundos de Alices
Entre maravilhas e doidices,
Aonde, em instantes,
Sou toda terra distante
E os que nela habitam.
E eles acreditam que lá
Sou navegante de mim mesmo,
Mar mutante a gerar ilhas em filhos distantes
A encarnar gerações de fetos a feitos gigantes.
Mas agora estou em tempo algum
A soltar puns desavisados
Àqueles que adentram meu quarto.
E então, quando acordo,
Ao retornar de meu próprio abandono,
Percebo o quanto é insano o cotidiano.
*
A CIDADE
A cidade
Tem a idade das trevas
Salpicadas de estrelas, lâmpadas,
Bobagens e cinderelas.
Todavia em mão única,
“Não tenha pressa de ir aonde você terá de chegar” –
Avisa-me um outdoor cheio de caveiras e baratas
Pr’eu ir mais devagar a quando
Tudo mudará,
A quando não mais vou ter que descascar
Batatas.
Pelo retrovisor, entre tanto,
Vejo o revisor de meu livro de esperanto
Que escrevo sobre o rei Davi e seu espanto
Sem pensar no porvir,
Numa imitação de Cristo.
Mas meu editor, pensando que sabe
Onde deve ir,
Não quer saber disto.
Esquecendo-me do outdoor,
Onde também vejo pintado
Novo Cristo crucificado,
Recuso-me a lhe entregar o livro,
Desapego-me de tudo,
Encosto o carro no mundo
E vou ver onde mais não serei visto.
*
AMIGOS
Mais vale um amigo voando
Do que dois na mão.
Pelo menos assim
Não pagamos
Passagem de avião.
*
O PERDÃO DE DEUS
Deus,
Em Seu absolutamente amoroso coração,
Podendo refazer outro ser
Das cinzas,
Concede aos pecadores
Todo perdão.
E se você chegar aos céus
A encontrar Hitler de braços dados
Com aquele que fora
Teu bondoso irmão, sorrindo-te,
Tendo restaurado todo coração?
É um impacto ou não?
Mas não penses nisto agora,
Não dês margem (de erro) a teu discernimento
Ou de teu irmão, que tem fraco entendimento
Sobre o Real preço do pão,
E do absoluto perdão de Deus.
É melhor crer no inferno
A ter que considerar somente
Quem usa terno
Digno de consideração.
Porque nascemos nus neste mundo cão
E nus nos despediremos de nós mesmos
A encarar toda revelação dos últimos mistérios,
Ainda por muito misteriosos pros irmãos
Depois que eles se forem dos cemitérios.
Mas, a despeito de toda pós-conclusão,
Assim diz um refrão numa canção:
Uma vez é bom morrer,
Duas vezes não.
*
A NOITE
A noite
Tudo parece claro.
Na escuridão vejo mais calmo,
E então descubro o segredo
Do calvo,
Careca de saber que o tempo
É curvo
Como o espaço.
A noite
Disfarço-me de falso.
Na solidão do quarto
Penso em “Ser” com um tanto
De medo
Do que posso fazer mais comigo mesmo
Do que com você.
*
ÀS FISIOTERAPEUTAS
Teu belo corpo deveria ser meu,
Pois queria ter os pés tão firmes quanto os teus.
Tua mão me acaricia e meu corpo debilitado se desfalece à calma,
Revestindo-se novamente de alma
A me fazer sentir tua palma
Em meu eu mais profundo.
Teu toque faz-me ver bem melhor o mundo.
E depois que tuas mãos me tocaram, dobraram-me,
Retorceram-me, bem trataram-me,
Sinto novamente o cotovelo a doer
De saudade.