À uma amiga na janela

I

Amiga, para não sentires o irremediável peso

dos anos esmagando teus

ossos,

para não sentires a vida soprando passageira

como essa brisa que corre pela tua janela,

- Apaixona-te!

Fazei uma loucura, pinte as estátuas, as paredes do teu quarto,

ouça teus discos, as Quatro Estações, Legião,

Soltai teu grito, bárbaro, acordai a vizinhança inteira!

Ao teu grito, luzes se acenderão,

cães hão de latir alvoroçados, os vizinhos

talvez chamem a polícia, o síndico, o corpo de bombeiros!

Mas não, não se atire da janela, não! não pule do quinto andar!

Mire e veja, olhai no espelho!

Teus olhos, úmidos, meigos, castanhos...

Essa é tua face agora, e você, que será amanhã,

daqui a trinta, quarenta, cento e cinquenta anos?

Desabrochai, amiga minha, desabrochai,

esqueça as cartas que não chegaram

e que jamais chegarão,

o tempo perdido na janela,

há tempo e frescura nas tuas mãos,

colhei as flores no jardim enquanto há flores,

enquanto há mãos, enquanto há jardins!

Mire e veja:

estes descampados vazios, estas pessoas que passam,

esse admirável mundo novo que se descortina a tua volta,

olhai as estrelas com sincera reverência,

suspire...

- Enlouqueça!

Faça-te um cavaleiro andante e parta por esse mundo

à caça de aventuras,

desfazei os agravos,

enfrentai com lança em punho

os labirintos

tortuosos de tua alma,

correi, correi, amiga minha,

correi para além dos horizontes do mundo,

correi e terá paisagens

que janela alguma poderá te dar,

correi, amiga,

ao trote ligeiro de teu Rocinante, correi!

II

Mas se por acaso julgares que todos estes versos

não passam de loucuras disparatadas

de um pobre poeta sem juízo,

um triste comércio de ilusões,

que tudo não passam de moinhos de vento,

eu te direi, amiga, suave e gravemente,

sim,

tens razão, doce amiga,

a vida da maioria das gentes

não passa de um espetáculo tedioso,

massacrados estamos pela miséria,

pela vileza de um mundo em desatino.

E direi que tens razão em acusar

minha insanidade.

Confesso que nada mais desejei senão te oferecer

num dia triste

e monótono

uma dose de minha loucura,

uma dose desse Quixote louco

que ainda resiste, pateticamente,

dentro de mim

e que sei e sinto

adormece em você.

***

Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 07/04/2010
Reeditado em 29/06/2010
Código do texto: T2183182
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