Noite
Num beco escuro,
entre dois edifícios já apagados,
em horas maduras
de uma noite sem estrelas ou lua,
uma sombra trêmula,
projetada por chama trêmula e franzina
de um toco de vela sacrílega,
sussurrava ao vento frio que passava.
Era um bêbado com uma garrafa na mão.
A garrafa fazia as vezes de platéia,
à qual discursava contra as injustiças do mundo;
ora tomava o lugar da amada,
ouvindo as lamúrias de um amor
cantado em versos de desespero e dor.
Esse sentimentos assim atirados
como jóias pela janela
e o choro rouco abafado
pelas doses de álcool e disfarçado
pelo sereno da madrugada
atraíram os seres da noite:
gatos, cães vadios, morcegos
e ratos vieram aquecer o pobre,
consolá-lo com a parecença dos seus destinos
e, se possível, furtar um pouco da beleza
daquela alma que se desnudava.
Fantasmas que erravam
pelos terrenos, agora limpos,
onde remotamente se erguiam seus ninhos
afluíram, combalidos por tal tormento de mendigo,
que derramava as últimas gotas
de uma humanidade já esquecida.
E o universo sangrava naquela melancolia,
e os próprios círculos de beatitude
silenciavam seus cânticos de louvor,
e Deus, que foi humano uma vez,
entristeceu-se por esse Lázaro,
que por lágrimas desejava morrer.
De repente, cessou a cantoria aflita.
A bebida atingira o efeito almejado
e o homem dormia.
Cobria-o o ar noturno, com seus vapores frios,
servindo-lhe de travesseiro uma pedra,
menos dura que o seu sono sem sonhos.
Enquanto isso,
no resto da cidade,
as consciências dormiam:
para sempre...