Noite

Num beco escuro,

entre dois edifícios já apagados,

em horas maduras

de uma noite sem estrelas ou lua,

uma sombra trêmula,

projetada por chama trêmula e franzina

de um toco de vela sacrílega,

sussurrava ao vento frio que passava.

Era um bêbado com uma garrafa na mão.

A garrafa fazia as vezes de platéia,

à qual discursava contra as injustiças do mundo;

ora tomava o lugar da amada,

ouvindo as lamúrias de um amor

cantado em versos de desespero e dor.

Esse sentimentos assim atirados

como jóias pela janela

e o choro rouco abafado

pelas doses de álcool e disfarçado

pelo sereno da madrugada

atraíram os seres da noite:

gatos, cães vadios, morcegos

e ratos vieram aquecer o pobre,

consolá-lo com a parecença dos seus destinos

e, se possível, furtar um pouco da beleza

daquela alma que se desnudava.

Fantasmas que erravam

pelos terrenos, agora limpos,

onde remotamente se erguiam seus ninhos

afluíram, combalidos por tal tormento de mendigo,

que derramava as últimas gotas

de uma humanidade já esquecida.

E o universo sangrava naquela melancolia,

e os próprios círculos de beatitude

silenciavam seus cânticos de louvor,

e Deus, que foi humano uma vez,

entristeceu-se por esse Lázaro,

que por lágrimas desejava morrer.

De repente, cessou a cantoria aflita.

A bebida atingira o efeito almejado

e o homem dormia.

Cobria-o o ar noturno, com seus vapores frios,

servindo-lhe de travesseiro uma pedra,

menos dura que o seu sono sem sonhos.

Enquanto isso,

no resto da cidade,

as consciências dormiam:

para sempre...

Daniel Afonso
Enviado por Daniel Afonso em 27/03/2010
Código do texto: T2161643
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