A noite e o vento

O vento e a noite sempre acolhem

minhas angústias, perenes angústias,

constantemente em mutação,

apresentando-se em circunstâncias distintas,

sob diferentes sentires,

uma e muitas,

mas remontando sempre

às angústias minhas.

Presumidas, meditadas, sentidas

e re-sentidas quase visceralmente;

quase desejadas.

Que nem nos sonhos consigo ser feliz!

Tristeza que me acompanha desde o berço,

discreta, sorrateira,

penetrando cada recanto de minha alma,

tornando-se parte de mim

mais que ossos e carne,

fazendo-se tão real,

inelutavelmente real,

quanto a própria vida.

Nem doce, nem amarga.

Ela já superou esses maniqueísmos.

Essa melancolia na qual me movo

tem a carga emocional de um pensamento,

enquanto meramente pensado,

a diafaneidade de uma dor física,

enquanto apenas percebida.

Como todo substancial,

ela se furta a juízos morais.

Talvez que estivesse misturada

no mesmo barro primordial.

Mas mitologizá-la é, de alguma forma,

explicá-la e compreendê-la

implica uma vulgarização.

O sublime escapa

às categorizações lingüísticas.

Só à poesia cabe captá-la,

como empreende com a noite e o vento;

através dos séculos, embaralhando

letras, conceitos e sentimentos

num ritual cabalístico.

Promovendo um retorno à caverna,

da qual quiçá nunca tenhamos saído,

a ver se as sombras não ocultam

riquezas mais incontáveis e preciosas

que as desveladas pela clara luz.

Riquezas tanto mais raras e imarcescíveis

porque oblíquas e fugidias.

Angústias que sacodem,

instilam vida quanto mais dela desesperar fazem.

Quisera exprimir a tristeza

infinita que preenche

a música de Beethoven.

Quisera experimentar mais que um átimo

da profunda melancolia que rege

cada um de seus acordes.

Tomara, um dia, poder dissolver-me

na majestade trágica

de uma folha de árvore a cair,

dissipar-me nessa eternidade,

na imensidão interminável,

no êxtase místico, orgiástico

desse caos primevo...

Já raia o novo dia.

Devo recolher minha tristeza,

pois somente a noite e o vento

sempre acolhem.

Daniel Afonso
Enviado por Daniel Afonso em 22/03/2010
Código do texto: T2151928
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