A noite e o vento
O vento e a noite sempre acolhem
minhas angústias, perenes angústias,
constantemente em mutação,
apresentando-se em circunstâncias distintas,
sob diferentes sentires,
uma e muitas,
mas remontando sempre
às angústias minhas.
Presumidas, meditadas, sentidas
e re-sentidas quase visceralmente;
quase desejadas.
Que nem nos sonhos consigo ser feliz!
Tristeza que me acompanha desde o berço,
discreta, sorrateira,
penetrando cada recanto de minha alma,
tornando-se parte de mim
mais que ossos e carne,
fazendo-se tão real,
inelutavelmente real,
quanto a própria vida.
Nem doce, nem amarga.
Ela já superou esses maniqueísmos.
Essa melancolia na qual me movo
tem a carga emocional de um pensamento,
enquanto meramente pensado,
a diafaneidade de uma dor física,
enquanto apenas percebida.
Como todo substancial,
ela se furta a juízos morais.
Talvez que estivesse misturada
no mesmo barro primordial.
Mas mitologizá-la é, de alguma forma,
explicá-la e compreendê-la
implica uma vulgarização.
O sublime escapa
às categorizações lingüísticas.
Só à poesia cabe captá-la,
como empreende com a noite e o vento;
através dos séculos, embaralhando
letras, conceitos e sentimentos
num ritual cabalístico.
Promovendo um retorno à caverna,
da qual quiçá nunca tenhamos saído,
a ver se as sombras não ocultam
riquezas mais incontáveis e preciosas
que as desveladas pela clara luz.
Riquezas tanto mais raras e imarcescíveis
porque oblíquas e fugidias.
Angústias que sacodem,
instilam vida quanto mais dela desesperar fazem.
Quisera exprimir a tristeza
infinita que preenche
a música de Beethoven.
Quisera experimentar mais que um átimo
da profunda melancolia que rege
cada um de seus acordes.
Tomara, um dia, poder dissolver-me
na majestade trágica
de uma folha de árvore a cair,
dissipar-me nessa eternidade,
na imensidão interminável,
no êxtase místico, orgiástico
desse caos primevo...
Já raia o novo dia.
Devo recolher minha tristeza,
pois somente a noite e o vento
sempre acolhem.