Gemidos de Arte (Augusto dos Anjos)
Esta desilusão que me acabrunha
É mais traidora do que o foi Pilatos!...
Por causa disto, eu vivo pelos matos,
Magro, roendo a substância córnea da unha.
Neste mundo vil, sombrio,
Pululam fantasmas antigos
E os perigos mais reais
Habitam os cantos esconsos.
Vi escorrerem tolas esperanças
E, ironia, escorri-me junto.
Quisera ver, bem longe dos meus dias,
Esta desilusão que me acabrunha.
Tenho estremecimentos indecisos
E sinto, haurindo o tépido ar sereno,
O mesmo assombro que sentiu Parfeno
Quando arrancou os olhos de Dionisos!
A cada tola inspiração
O relógio aproxima o fim,
Porém os pulmões insistem,
Afeitos ao mesmo exercício.
Quando vacilo, em tal viver sem graça
E pelo Olimpo vago sem destino,
Sei que não lembro ao deus a antiga culpa;
Tenho estremecimentos indecisos!
Em giro e em redemoinho em mim caminham
Ríspidas mágoas estranguladores,
Tais quais, nos fortes fulcros, as tesouras
Brônzeas, também giram e redemoinham.
Expulso do Paraíso,
Sem firmeza, sem conforto,
Preciso este meu sentir,
Incrédulo e horrorizado.
Que situações algozes me feriram,
Quais tratos de carrascos, de torturas.
As dores, as lembranças peremptórias,
Em giro e em redemoinho em mim caminham.
Os pães – filhos legítimos dos trigos –
Nutrem a geração do Ódio e da Guerra...
Os cachorros anônimos da terra
São talvez os meus únicos amigos!
O Amor é pão e, nutritiva,
A interação dos homens,
Mas é fato: os animais
São sempre tão fiéis!
Não tenho quem me faça companhia,
Um Qincas Borba para ouvir histórias
E merencórios versos, solto ao vento,
Os pães – filhos legítimos dos trigos –!
Ah! Por que desgraçada contingência
À híspida aresta sáxea áspera e abrupta
Da rocha brava, numa ininterrupta
Adesão, não prendi minha existência?!
Era o tempo de plantar
E firmar bases concretas,
Mas errei entre quimeras,
Sem deter-me em importâncias.
Os Textos avisavam, porém fiz
Ouvidos moucos, não acreditei;
Firmei por sobre a areia chão e teto,
Ah! Por que desgraçada contingência?
Por que Jeová, maior do que Laplace,
Não fez cair o túmulo de Plínio
Por sobre todo o meu raciocínio
Para que eu nunca mais raciocinasse?!
Quanto mais pensei nos fatos,
Desta vida que me assombra,
Mais busquei o imponderável,
Escavando as incertezas.
Há um deserto sobre o qual a força
De Jeová empurrou mais areia
E se emperrou a máquina, de fato,
Por que Jeová, maior do que Laplace?
Pois minha Mãe tão cheia assim daqueles
Carinhos, com que guarda meus sapatos,
Por que me deu consciência dos meus atos
Para eu me arrepender de todos ele?!
Quem dera guardar o tempo,
Em que vivia inocente
E a mente não tinha medo,
Sem saber do transitório.
Enquanto fui criança tive colo,
Num berço de algodão adormeci,
E conto dos Provérbios porque foi
Pois, minha Mãe, tão cheia assim daqueles.
Quisera, antes, mordendo glabros talos,
Nabucodonosor ser no Pau d’Arco,
Beber a acre e estagnada água do charco,
Dormir na manjedoura com os cavalos!
Saudades daquele quintal,
Do pomar da minha infância,
Seu jeito rude e tão simples,
Carregado de sabores...
Nas noites perfumadas de Lua cheia,
O palco das quimeras sem futuro,
Poder ali brincar com as galinhas,
Quisera, antes, mordendo glabros talos.
Mas a carne é que é humana! A alma é divina.
Dorme num leito de feridas, goza
O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,
Beija a peçonha, e não se contamina!
Da visita a antigos páramos,
Traz ilesa a excelsa luz;
Não é presa e paira acima
Da matéria conspurcada...
Etérea, vem de outras dimensões
E diante desse caos que habita a terra,
Perturba-se e conhece a ignomínia,
Mas a carne é que é humana! A alma é divina.
Ser homem! Escapar de ser aborto!
Sair de um ventre inchado que se anoja,
Comprar vestidos pretos numa loja
E andar de luto pelo pai que é morto!
Poderia ser qualquer outro
A ocupar o meu lugar,
Mas restou-me, justo a mim,
Tal fatia da existência.
O tempo diz que há muito a percorrer,
Nas dores mais certeiras que se tem,
Travar embate com a Ceifadeira,
Ser homem! Escapar de ser aborto!
E por trezentos e sessenta dias
Trabalhar e comer! Martírios juntos!
Alimentar-se dos irmãos defuntos,
Chupar os ossos das alimarias.
Sem os meios de escapar
Desse matar ou morrer,
Nem do sono e da vigília:
Animal entre outros mais.
Do teu suor terás o alimento
A repetir os ciclos sem cessar.
Nessa rotina tens destino certo
E por trezentos e sessenta dias.
Barulho de mandíbulas e abdômens!
E vem-me com um desprezo por tudo isto
Uma vontade absurda de ser Cristo
Para sacrificar-me pelos homens!
Num sonho, juntar água e céus,
Recriar um tempo primordial,
Tendo por fim o estado de pureza,
Prescrutar outras latências.
Encontrar homens que, vivendo castos,
Já não cuspissem gestos, nem palavras,
Onde nunca jamais então se ouvisse,
Barulho de mandíbulas e abdômens!
Soberano desejo! Soberana
Ambição de construir para o homem uma
Região, onde não cuspa língua alguma
O óleo rançoso da saliva humana!
A cada um, um espaço
No espaço desabitado;
Um passado e um futuro
Rodeados de mistério.
Nascer, essa não foi a minha escolha:
Podia ser apenas DNA,
Descarte destinado a ignorar
Soberano desejo! Soberana!
Uma região sem nódoas e sem lixos,
Subtraída à hediondez de ínfimo casco,
Onde a forca feroz coma o carrasco
E o olho do estuprador se encha de bichos!
Viver por viver é loucura;
Viver pra morrer, insensato...
Porisso é premente a esperança
De dias de transformação!
Pela renovação da criatura,
Na força da real sublimação,
Assim seja a pureza preservada;
Uma região sem nódoas e sem lixos!
Outras constelações e outros espaços
Em que, no agudo grau da última crise,
O braço do ladrão se paralise
E a mão da meretriz caia aos pedaços!
Varrer do Universo a iniquidade,
Congelar o mal em seu domínio,
Mover a hecatombe e anunciar
Que tais fatos se cumpriram.
Num embate ilusório e quixotesco
Vislumbrar a impossível permanência;
Entre o suspenso e o ainda não pensado,
Outras constelações e outros espaços.
Esta desilusão que me acabrunha
É mais traidora do que o foi Pilatos!...
Por causa disto, eu vivo pelos matos,
Magro, roendo a substância córnea da unha.
Neste mundo vil, sombrio,
Pululam fantasmas antigos
E os perigos mais reais
Habitam os cantos esconsos.
Vi escorrerem tolas esperanças
E, ironia, escorri-me junto.
Quisera ver, bem longe dos meus dias,
Esta desilusão que me acabrunha.
Tenho estremecimentos indecisos
E sinto, haurindo o tépido ar sereno,
O mesmo assombro que sentiu Parfeno
Quando arrancou os olhos de Dionisos!
A cada tola inspiração
O relógio aproxima o fim,
Porém os pulmões insistem,
Afeitos ao mesmo exercício.
Quando vacilo, em tal viver sem graça
E pelo Olimpo vago sem destino,
Sei que não lembro ao deus a antiga culpa;
Tenho estremecimentos indecisos!
Em giro e em redemoinho em mim caminham
Ríspidas mágoas estranguladores,
Tais quais, nos fortes fulcros, as tesouras
Brônzeas, também giram e redemoinham.
Expulso do Paraíso,
Sem firmeza, sem conforto,
Preciso este meu sentir,
Incrédulo e horrorizado.
Que situações algozes me feriram,
Quais tratos de carrascos, de torturas.
As dores, as lembranças peremptórias,
Em giro e em redemoinho em mim caminham.
Os pães – filhos legítimos dos trigos –
Nutrem a geração do Ódio e da Guerra...
Os cachorros anônimos da terra
São talvez os meus únicos amigos!
O Amor é pão e, nutritiva,
A interação dos homens,
Mas é fato: os animais
São sempre tão fiéis!
Não tenho quem me faça companhia,
Um Qincas Borba para ouvir histórias
E merencórios versos, solto ao vento,
Os pães – filhos legítimos dos trigos –!
Ah! Por que desgraçada contingência
À híspida aresta sáxea áspera e abrupta
Da rocha brava, numa ininterrupta
Adesão, não prendi minha existência?!
Era o tempo de plantar
E firmar bases concretas,
Mas errei entre quimeras,
Sem deter-me em importâncias.
Os Textos avisavam, porém fiz
Ouvidos moucos, não acreditei;
Firmei por sobre a areia chão e teto,
Ah! Por que desgraçada contingência?
Por que Jeová, maior do que Laplace,
Não fez cair o túmulo de Plínio
Por sobre todo o meu raciocínio
Para que eu nunca mais raciocinasse?!
Quanto mais pensei nos fatos,
Desta vida que me assombra,
Mais busquei o imponderável,
Escavando as incertezas.
Há um deserto sobre o qual a força
De Jeová empurrou mais areia
E se emperrou a máquina, de fato,
Por que Jeová, maior do que Laplace?
Pois minha Mãe tão cheia assim daqueles
Carinhos, com que guarda meus sapatos,
Por que me deu consciência dos meus atos
Para eu me arrepender de todos ele?!
Quem dera guardar o tempo,
Em que vivia inocente
E a mente não tinha medo,
Sem saber do transitório.
Enquanto fui criança tive colo,
Num berço de algodão adormeci,
E conto dos Provérbios porque foi
Pois, minha Mãe, tão cheia assim daqueles.
Quisera, antes, mordendo glabros talos,
Nabucodonosor ser no Pau d’Arco,
Beber a acre e estagnada água do charco,
Dormir na manjedoura com os cavalos!
Saudades daquele quintal,
Do pomar da minha infância,
Seu jeito rude e tão simples,
Carregado de sabores...
Nas noites perfumadas de Lua cheia,
O palco das quimeras sem futuro,
Poder ali brincar com as galinhas,
Quisera, antes, mordendo glabros talos.
Mas a carne é que é humana! A alma é divina.
Dorme num leito de feridas, goza
O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,
Beija a peçonha, e não se contamina!
Da visita a antigos páramos,
Traz ilesa a excelsa luz;
Não é presa e paira acima
Da matéria conspurcada...
Etérea, vem de outras dimensões
E diante desse caos que habita a terra,
Perturba-se e conhece a ignomínia,
Mas a carne é que é humana! A alma é divina.
Ser homem! Escapar de ser aborto!
Sair de um ventre inchado que se anoja,
Comprar vestidos pretos numa loja
E andar de luto pelo pai que é morto!
Poderia ser qualquer outro
A ocupar o meu lugar,
Mas restou-me, justo a mim,
Tal fatia da existência.
O tempo diz que há muito a percorrer,
Nas dores mais certeiras que se tem,
Travar embate com a Ceifadeira,
Ser homem! Escapar de ser aborto!
E por trezentos e sessenta dias
Trabalhar e comer! Martírios juntos!
Alimentar-se dos irmãos defuntos,
Chupar os ossos das alimarias.
Sem os meios de escapar
Desse matar ou morrer,
Nem do sono e da vigília:
Animal entre outros mais.
Do teu suor terás o alimento
A repetir os ciclos sem cessar.
Nessa rotina tens destino certo
E por trezentos e sessenta dias.
Barulho de mandíbulas e abdômens!
E vem-me com um desprezo por tudo isto
Uma vontade absurda de ser Cristo
Para sacrificar-me pelos homens!
Num sonho, juntar água e céus,
Recriar um tempo primordial,
Tendo por fim o estado de pureza,
Prescrutar outras latências.
Encontrar homens que, vivendo castos,
Já não cuspissem gestos, nem palavras,
Onde nunca jamais então se ouvisse,
Barulho de mandíbulas e abdômens!
Soberano desejo! Soberana
Ambição de construir para o homem uma
Região, onde não cuspa língua alguma
O óleo rançoso da saliva humana!
A cada um, um espaço
No espaço desabitado;
Um passado e um futuro
Rodeados de mistério.
Nascer, essa não foi a minha escolha:
Podia ser apenas DNA,
Descarte destinado a ignorar
Soberano desejo! Soberana!
Uma região sem nódoas e sem lixos,
Subtraída à hediondez de ínfimo casco,
Onde a forca feroz coma o carrasco
E o olho do estuprador se encha de bichos!
Viver por viver é loucura;
Viver pra morrer, insensato...
Porisso é premente a esperança
De dias de transformação!
Pela renovação da criatura,
Na força da real sublimação,
Assim seja a pureza preservada;
Uma região sem nódoas e sem lixos!
Outras constelações e outros espaços
Em que, no agudo grau da última crise,
O braço do ladrão se paralise
E a mão da meretriz caia aos pedaços!
Varrer do Universo a iniquidade,
Congelar o mal em seu domínio,
Mover a hecatombe e anunciar
Que tais fatos se cumpriram.
Num embate ilusório e quixotesco
Vislumbrar a impossível permanência;
Entre o suspenso e o ainda não pensado,
Outras constelações e outros espaços.
Nilza Azzi
#o texto em negrito é o poema com o qual estabeleci o diálogo
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