Homenagem
Lentes que modifiquem o mundo,
assim desejo meus óculos...
Propiciem-me eles entender
o mistério que cada pessoa traz
consigo, o qual a faz
sentir a vida de forma única;
sofrer a dor com tibieza ou coragem;
buscar a felicidade em si mesma
ou nos altos carteados que jogam
os deuses, definidores do destino
dos homens.
Lentes feitas de espelhos,
nos quais eu não me reconheça,
de lagoas e rios.
Em cuja superfície,
contorções espamódicas
de raios de luz
simulem imagens de um delírio febril:
as paredes de um quarto de moribundo
fazendo-se próximas e distantes
como uma garganta pronta a engolir;
o corredor, avistado através da porta,
imenso e profundo
como a solidão do mundo;
as partículas de poeira
chocando-se, em movimento caótico,
umas às outras querendo indicar o caminho
para fora do braço de sol que as ofusca.
Lentes que provoquem risos
ao contemplar um discurso presunçoso e oco
e inspirem reverência
quando diante da sabedoria
de um andarilho ateu.
Lentes que penetrem máscaras,
revelando rugas sulcadas por lágrimas
e mordeduras em lábios,
de aflições passadas, presentes e pressentidas.
Lentes que arranquem o capuz
da morte e, concentrando calor
de um sonho iluminado,
derretam-lhe a lâmina da foice,
deslindando sua segunda natureza:
recusa insolente a assumir
a responsabilidade que a cada um toca
sobre as própria e alheias vidas.
Desejo lentes em que se reflita
o Universo,
como, no oceano,
se retrata o céu.
Lentes a que todo ser humano
compareça, divino e profano,
magníloquo e mudo,
sóbrio e insano.
Lentes em que Deus
mostre sua face
e envergonhe-se
do abandono a que legou a humanidade.
Lentes que tenham a minha estatura,
o peso de minhas insônias,
a largura de meus pecados,
o aro do tamanho de meu nariz.
Quero o sempre "pince-nez",
a marca insígne e precisa
do operário de letras
que foi Machado de Assis.