nunca tive uma raça definida
minha árvore genealógica não conheceu gênese ou princípio
vivi como os ventos em final de tarde
sem origem e sem ocaso...
antes era o desejo opaco de conhecer o nada de onde originei
agora não passo de uma cicatriz permanente
numa folha de papel reciclado
depois restará a cinza azulada da minha memória poética
gravada na língua antagônica do mundo
que habita na arte...
meus olhos - não foram esculpidos
com o azul misterioso do céu de Atenas -
eles brotaram das dores castanhas de estrelas cadentes
meu nariz - jamais conheceu a inclinação pontiaguda
de uma montanha de neve
[mas] apenas a sensualidade arredondada de ondas suicidas
meus lábios - nasceram das pedras vulcânicas
escondidas no lado escuro da lua
e jamais puderam dizer a finura germânica dos habitantes do leste
minhas orelhas - não tiveram asas de prata para voar até o Parnaso
- pequenas e frágeis apenas gozaram a música misteriosa
produzida pelos sonhos desesperados de Orfeu embriagado
meu pescoço foi a única parte do meu corpo apontada para Deus
ainda assim - um Deus sem filho e sem mundo -
um Deus azul como um céu e dançarino como uma folha que cai
minha cor - foi sempre indefinida e enigmática
nascida de uma aurora boreal...
...uma mistura de tons
habitou em minha pele
por toda a vida...
- às vezes, negro; às vezes, branco; às vezes, pardo
(amarelo, roxo, lilás e azul)
- às vezes, não era nada; às vezes, moreno claro; às vezes,
marrom cansado
- às vezes, vermelho
[fui um verso escrito com todas as raças
e suas diferenças essenciais]
meu corpo não foi presenteado
com a altura dos titãs amaldiçoados
nem condenado pelo trágico destino dos pigmeus africanos
- meu corpo cumpriu a moira secreta das coisas sagradas
e diminuiu a distância entre a terra e os sonhos...
minha alma herdou o engenho lírico da mecânica
e a arte alucinada e essencial
das famílias que educaram meu espírito
minha alma fez nascer
na solidão existencial de uma taça de vinho
a poética necessária
para sobreviver entre os anjos e os deuses...
- fui cúmplice de uma história
feita de fogo e pólvora
em nome de tudo que aprisiona
e maltrata...
minhas mãos conheceram o martírio adocicado
do trabalho mais pesado
e o fardo paradoxal do esforço constante
e ainda assim
permanecem intactas, até mesmo,
no instante mágico do nascimento de um poema
minhas mãos escreveram (em silêncio)
a gênese ontológica da poesia infinita
que reside no vento