Mar

Difícil o poeta

que nada tenha escrito sobre o mar.

Talvez que o sintamos

como parte de nós mesmos:

também ele infinito,

também ele desconhecido,

também ele contraditório

(em seus paroxismos de gigantescas ondas

alternando-se com calmarias).

O mar do qual quiçá se tenha erguido

um de nossos remotos ancestrais.

O mar ao qual tornaram tantos

e tantos náufragos

que o tentaram abraçar

(num momento de desespero),

desaparecendo nos enormes braços de água,

reencontro inesperado com as matrizes da vida.

O mar que povoa nossas lendas,

romances, aventuras.

Mar que se fez preciso navegar

e através de quem os continentes

se coseram novamente

na mítica Pangea.

Mar dos monstros horripilantes e letais,

que Posêidon, algumas vezes,

recebia ordem de libertar.

Mar que se profetizou viraria sertão,

escoando para o leito vazio

onde a natureza morta

e as caveiras de boi

o aguardam para a concretização

do dito apocalíptico.

Mar que corre nas veias,

que escorre nas lágrimas,

que goteja no suor.

Mar que é vida e que é morte,

recriando dialeticamente a humanidade.

Mar que jorrou do peito ferido de lança

de um Cristo agonizante,

celebrando a união de céu e terra,

dando aos homens a visão transfigurada

do porvir, em suas desilusões

e esperanças.

Mar, árbitro da paixão humana;

quantos amantes, por todo o sempre, separados!

Mar, força bruta,

violentando a terra,

resguardando e renovando

a eternidade e potência dos elementos.

Mar.

Dá-nos um pouco do teu sal:

cristais diminutos

nos quais pulsam universos inteiros

que em ti se precipitam,

atraídos por teu canto de sereia,

para serem fecundados pelas águas seminais.

Molha-nos com teus fluidos vivificantes,

que o coração desejamos sentir bater outra vez.

E quando alguém desejar ver Deus,

busque-o não nos céus cataclísmicos,

porém, no fundo das águas,

de cuja espuma brotam, todos os dias,

Vênus de todas as raças

e de todas as perfeições.

Daniel Afonso
Enviado por Daniel Afonso em 15/03/2010
Código do texto: T2139578
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