Decadência

- Cadê a melodia que, na viola, tocavas?

- A moda cá está no coração e, se não chora mais

a viola, é que agora tenho reumatismo na mão.

- E as xácaras que, nas noites frias, narravas?

- Estas, cá as tenho de memória e, se ora te

[parecem

fugidias, é que minha voz rouca já não faz glória.

- E os rosários cantados, as festas de reis?

- Destes tenho saudade e, se, hoje em dia, não

[têm

vez, é que a velho tossegoso ninguém aplaude.

- E o bom bate-papo, tendo a caninha por guardiã?

- E quer ouvir mágoa de idoso essa gente louçã?

[Ademais

uma cirrose me impede de na aguardente pôr gosto.

- E as estórias de onça, as peripécias que de ti

[se diziam?

- Meu filho, aprenda uma coisa: a bichona tem medo

da juventude néscia, não de um leso na moita.

- Mas, se até lupanares freqüentavas!

- As senhoritas d’então se celebraram todas em

[altares

de sétimo dia. Além do que, quem gosta de velho é solidão.

- Com certeza, o caminho do eito não enfias?

- Não, que me dói o peito. Este homem de agora, que a vida empenhou na dura lida, vê vencer a hipoteca sem a poder

resgatar com suas minguadas aposentadorias.

- Que fazes destarte, ó caro amigo?

- Vou vindo nesta transição entre a vida e da morte

o baluarte, a passo coxo, porém, certo, para o último jazigo.

Daniel Afonso
Enviado por Daniel Afonso em 06/03/2010
Código do texto: T2122788
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