Crepúsculo
A tarde cai. O crepúsculo,
com suas cores e solidões,
cantadas pelos poetas de todos os tempos,
se apossa das criaturas.
Põe-lhes cãs onde, até há pouco,
negras madeixas excitavam imaginações.
Põe-lhes rugas onde, ainda hoje de manhã,
havia covinhas reveladas pelo riso fresco.
As andorinhas brancas e negras
trazem, após si, a noite incipiente,
que logo se fará madura.
É o ocaso das cores.
Os pandeiros se recolhem para dar lugar
às violas e suas serestas de saudades.
As cantigas de roda se fazem
embaladoras canções de ninar.
Dos madrigais da juventude sopra
uma fina brisa, mística, transfiguradora,
que alguns supuseram vir do rio.
Este murmura além da colina,
transbordante, avultoso.
Ele vem beber as almas,
recolher as alegrias e os despojos.
Estige de margens lúgubres,
cortando por terras de peregrinação.
E, nos armários coloniais,
ternos descosidos e vestidos que saíram de moda
dançam sua eterna valsa,
por salões iluminados e em ruínas.
Vozes de outrora balbuciam
as últimas novidades de uma época
em que tudo já é antigo.
Sobre penteadeiras de espelhos opacos,
caixinhas carcomidas pelos cupins
guardam maços de cartas,
em que se fala de pessoas não mais viventes;
piqueniques são planejados em parques
invadidos por arranha-céus;
palavras hoje esquecidas,
de sentimentos ora olvidados,
são declamadas, versejadas, rimadas,
dando vazão a uma melodia que se extinguiu.
Velhos calendários, marcados aqui e ali,
de folhas amarelecidas,
cheirando a mofo, lembram
dias de procissões religiosas,
de quermesses memoráveis,
de casamentos, de aniversários
que não se comemoram mais.
Um pouco de mim se foi
com a tarde que findou.
A noite ainda não se instaurou
e fico à aguarda, no interlúdio dos séculos
(das estações),
do momento da fusão
do meu eu presente, microcósmico,
com o meu eu futuro, que já não será mais
eu, montanhas comunicadas por um pontilhão
sacudido pelo vento sobre o abismo.