[Molambo]
[Ante a fatalidade, só a ironia nos salva! - Memórias da Estrada do Matadouro – Araguari – MG]
Da porta da venda eu o vejo —
o molambo de gente vem vindo;
ao peso das capangas imundas,
seu corpo oscila, mas avança sempre.
Chega antes o fedor de seu corpo sem banho,
e em seguida, ele chega, entra na venda,
arreia as capangas no chão,
olha a sua volta e assunta qual das faces
que o olham lhe seria benevolente,
aquela que não lhe recusaria uma pinga.
Queixa-se... lamuria-se... explica-se:
este machucado na testa é de um tombo
que levou lá no arraial da Lagoinha,
— “Num é de pingaiada não senhor”;
tem mais o joelho escalavrado —
— “Foi um coice de mula, é sim!”;
tem essa cicatriz funda na face direita,
— “Briguinha à-toa, por causa duns nada!”.
Mando que lhe sirvam uma pinga,
ele se apruma e me agradece:
— “Deus lhe pague, seu minino!”.
Depois, ajeita a traia e sai pra rua,
lá vai o traste de horrenda catadura...
Fico ruminando antiga filosofia
colhida no Jardim de Epicuro:
“Deus, ou quer impedir os males e não pode,
ou pode e não quer,
ou não quer nem pode,
ou quer e pode.”
Sinto ânsia de choro, mas contenho-me:
constato que a lucidez é inimiga,
e tem origem na mesma nascente
de onde brotam as lágrimas;
assim, cheio de poder, reinvento Deus:
—“Ôh, traz mais uma pinga aqui!”
[Penas do Desterro, 19 de dezembro de 2004]
[excertos do meu Caderno 4]