CARTA ABERTA À SOLIDÃO

Bom dia, Solidão.

É hora de papear ao teu lado:

será necessário uma nova carta de apresentação?

Passeei pelo mundo

até gastar a sola dos destinos:

não imaginei que, mesmo sozinha, cresceste tanto!

Não ria da maturidade falsa

por trás dessa grave voz imbecil:

ainda quero ensurdecer os instrumentos de sopro

com a histriônica guitarra estridente,

ainda hei de calçar sandálias para os dedos livres

enquanto os sapatos apertam bolhas,

ainda espero beijar lábios nus de qualquer tintura

para sentir o gosto da boca umedecida,

ainda espero convencer os idiotas mais humanos

dos sonhos imperfeitos do tempo adulto,

espero devolver-los à Terra e ao mar Pacífico.

Ah, como eu me lembro do dia em que acabei contigo!

Tua melancolia era tão irreversivelmente bonita

que me fascinei com a tristeza da separação.

Ah, como era feliz quando, ao teu lado, te consumia!

Teu masoquismo galopante, desumano e triste

marcou hora pro encontro, princípio ou carta.

Fui feliz contigo

quando beijei meus restos.

Mas agora, completo,

para que pensar em ti, Solidão?

Tua grande adversária

é a mulher verdadeiramente amada,

- digo: “Só a amada verdadeira!” –

pois estar junto a uma mulher qualquer,

sem conservar o olhar-brilho da mulher essencial,

é como conviver com o antebraço cruzado contigo, Solidão.

E para onde vais daqui a pouco, Solidão?...

Se acostumei a dividir minha fala

com quem ri, com quem cala, com quem discute...

Se acostumei a dividir meu canto

com quem acalante, com quem more, com quem nine...

Se acostumei a dividir meu espanto

com quem divaga, com quem aceite, com quem arda...

Se acostumei a dividir meu desespero

com os distantes, com os arrogantes, com os mal-amados...

A minha companheira

de harmonia, entendimento, paixão e conversão,

cansada, escorregou pelo ralo da preguiça.

Por isso te procurei, Solidão:

má companheira das noites de insônia.

Hoje, Solidão,

perdoe-me a recaída,

senti vontade de falar contigo

pois a mulher amada adormeceu

ao meu lado, de estafa.

Ajude-me, Solidão,

deixes o ciúme de lado,

e aceite-me vivo com minha população.

Não contarei para ela essa noite de silêncio!...