Auto-Exumação
Os anos passaram
Preso, sem algemas
A não ser as de papel
Que são mentais
Vivo aqui em casa
Encarcerado
Em meu túmulo para vivos
Minha casa.
Os anos passaram
Sucederam-se uns aos outros
Sem que eu assistisse
O desfile
Hoje, vejo-o passar
Em cortejo fúnebre
Minh’alma viúva
Viúva de mim
Que sequer viu o enterro
Hoje assiste a exumação
Prece judaica nos lábios
Os meus ossos doem
A viúva minh’alma, donzela assustada
Deixa o cemitério de minha vida
E volta para casa
Onde vive sem nunca ter gritado,
Nem se rido, nem gemido
Nada viveu, apenas sonhou
A viúva de minh’alma
Que sou eu morto em mim
Toca agora um pedacinho de realidade
Um fugaz momento no espelho
Um caco de vida que estilhaçou-se
Ali caído, no piso mal-varrido
Concretude, dor, verdade, vidro,
Rugas, calendário, datas, lembranças
Será tarde para acordar?
Será tarde para tocar a vida?
Uma poetisa me disse:
Não, não é tarde!
Sem querer, com medo
No pedacinho de vida
Ali caído e esquecido
Pus o dedo
Toquei-o
Peguei-o, segurei-o
Levei-o à boca...
Engoli!
E senti seu sabor
Um pedacinho... vivi.
Ressuscitei-me.
Nunca é tarde, pois.
Eis-me aqui !
(A todas as almas viúvas de si, as que não tocaram
e as que não tocam, a vida... )