Confronto.
I
Que este mal sem perdão, o mal de amar
Que nos torna servil ou soberano
Sufoca o racional e o mais insano
Carícia pra ferir e pra sonhar.
A tortura já fez casa na dor
A prisão nos limites destes braços,
Sanidade partida em mil pedaços
Quanto mais desprezado, mais amor.
Cada amante se rende nos seus gestos
Latentes, saturados de doçura
Sufocados por surdos manifestos
A servidão se faz valer, não cura;
Apura nos desejos mais contestos:
Bateu Amor à porta da Loucura.
II
Bateu Amor à porta da Loucura
Uma tensão total, fora de si;
Cansou de tanta dor, quis desistir,
Vestiu-se no estupor, tal armadura.
Do limbo conferiu sua largura
A vastidão profunda era o caminho
Como em toda ilusão ruiu sozinho
Na venal liberdade da clausura;
Para cada certeza, um sofrimento
Como todo lamento quer perdão
Quando a sombra traz luz e movimento
Como toda doença busca o são
Pois guarda na presença um sentimento
“Deixa-me entrar – pediu – sou teu irmão.”
III
“Deixa-me entrar – pediu – sou teu irmão.”
Outra face sem par, falsa virtude,
Feito um risco que encanta, mas ilude;
Semeando promessa e sedução.
Duas artes opostas como as mãos,
Para tanta destreza, a sestra rude;
Agonia, vazio e quietude
São dois pólos, dois mitos, céu e chão.
Silencio dois gritos em conflito
A pureza perdida na procura
O pecado estampado neste rito
A ferida lateja e não se cura
Do impuro profundo do infinito:
Só tu me limparás da lama escura.
IV
Só tu me limparás da lama escura
Teu toque, tua luz, te fará plena
Tua paz torna as dores mais amenas
A lágrima percebe tal doçura.
Só tu recordaras o nosso canto
O silencio ornado de poemas
Tua graça desmonta meu dilema
Espalha na beleza do acalanto.
Recordo este meu jeito, meus defeitos,
Tantos erros e gestos de perdão
Quanta dor sufocada neste peito
Quando tento sair desta prisão
Esta teia que cobre; não rejeito,
“A que me conduziu minha paixão.”
V
“A que me conduziu minha paixão.”
O instinto se perdeu, saiu de mim
A razão pereceu sem qualquer fim
Agora sou talvez, talvez senão...
Minha fé sucumbiu num devaneio
Como causa de tudo que já quis
Mas por tanto querer sou infeliz
A frustração somada com receio.
Quando o senso se apura mais além
Tantas sombras mantidas a escondê-lo
Nas voltas e revoltas por alguém
Quantos olhos vigiam-no sem vê-lo
A procura se finda no desdém:
A Loucura desdenha recebê-lo.
VI
A Loucura desdenha recebê-lo
A razão faz valer sua presença
Mas o senso recusa toda crença
Quer o instinto e, bem mais por merecê-lo.
Quando o bem é distante e irreal,
Quando a sombra se mostra sem segredo
Toda paz se despede abraça o medo
O desconforto cede e mostra o mal.
O presente suspenso no porvir
Contra o tempo descrente e soberano
Amar, sofrer, viver e resistir.
Que morrer não faz parte dos planos
Perdido e tantos rumos pra seguir
Sabendo quanto Amor vive de engano.
VII
Sabendo quanto Amor vive de engano
Bastando que haja o tolo que acredite
Na ilusão do consolo e no convite,
Coração crê e duvida leviano.
O amante siderado traça plano,
Para tal sedução não há limite
Que o desfecho esperado precipite
Quando o fado se prova soberano.
Mesmo frágil denota neste trato
A paixão que resguarda como zelo
Que inflama quando sofre o insensato,
Perde-se em emoções, em atropelos,
O seu rosto reflete no retrato
Mas estarrece de surpresa ao vê-lo.
VIII
Mas estarrece de surpresa ao vê-lo
Em cada face que confronta o gosto
Em cada gesto, que desmonta o rosto,
É meu reflexo que desfaz no espelho.
Guardo o silêncio surreal do apelo
Cada palavra em sentimento exposto
Tendo perdido o verdadeiro posto
Vivo encantado num venal modelo.
Tão parcial, quanto ruim; enfim,
Encaro o frágil de um refém tirano
E tantas dores sem revolta em mim
Aprendi com o tempo, com o dano,
E a natureza fez nascer, por fim,
De humano que era, assim tão inumano;
IX
De humano que era, assim tão inumano;
Confuso por ser fruto de uma espera
Com tal humor, feito presa, feito fera;
Cedendo neste instinto tão tirano.
Onde o tempo transforma dor em anos
E a paixão busca paz e desespera
A ampulheta congela novas eras
Noutro tédio banal, cotidiano.
Mesmo preso por ritos na memória
O tal final feliz não sucedeu
A emoção se despede tão simplória;
Da inocência da fé no credo ateu
Que abre templo e as portas da vitória
E exclama: “Entra correndo, o pouso é teu.”
X
E exclama: “Entra correndo, o pouso é teu.”
Um peito soberano te conforta
Quando rumos são linhas mais que tortas;
Inventa: teu caminho se perdeu.
A miragem se mostra um falso véu
Distorcendo nos olhos luzes mortas
Inventando paredes, novas portas;
Fabulosas mentiras sobre o céu.
O tempo é farsa por impor o eterno
E o que sente se mostra tão vulgar
Como um vulto sem viço do moderno.
Tal estado de coisas é um “prostrar”,
Que molda como céu ou como inferno,
Mais que ninguém mereces habitar.
XI
Mais que ninguém mereces habitar.
A esperança cansada do devir
Tuas mãos são fadadas a trair
Que o destino te espera rastejar.
Não há causa que faça lamentar
A força que te move e faz cair
A queda que não ousas resistir
Quando a paz desta dor te abandonar
A força que renova feito luz
Quando o escuro fez causa e se perdeu
O frágil sol ingrato em vão seduz.
O escuro feito causa se fez Deus;
No calor deste velo quem reluz?
Minha casa infernal feita de breu.
XII
Minha casa infernal feita de breu.
Cujas sombras celebram tais pecados
Jamais desejará ver perdoado
O fervor deformado de um ateu.
Se a paixão quer a paz nos olhos teus,
Fecha os olhos, quem foi será lembrado
Pelo fogo que viu pacificado
Que o mundo que sonhavas era meu.
Mas o Verbo apostou neste confronto
E o canto feriu tanto que lastimo
E tudo que se viu foi desencontro
Nas mãos da lucidez o desatino
Meu senso segue tenso e cede tonto,
Enquanto me retiro, sem destino.
XIII
Enquanto me retiro, sem destino.
Perco a fé, pois prossigo sem caminho
Mitigando lamúrias num cadinho
Transformando qualquer gesto mofino
Nas injúrias, repastos de verdades.
A virtude refeita na censura
Molda-se na cordata compostura,
Se posta muito além da caridade.
A memória da voz que me perturba
Encanta pelo tom que vem do hino
Teu rosto me consome na penumbra.
Enlouqueço e recordo o vaticínio
Este algoz que desdenha me vislumbra
Pois não sei de mais triste desatino.
XIV
Pois não sei de mais triste desatino.
Que perder-se na fé do Criador
A matéria tão pródiga do Amor
A inocente candura de um menino.
Crê na dor sem igual, se determino
Limite sensual na sua fé
A força do hedonismo se faz ré
Quer Amor, torto Amor, eu abomino.
Este vício doado por qualquer
Numa causa que finda por matar,
A semente sem paz só quer viver
Muitas vidas além vão consumar
A loucura maior: maior prazer,
“Que este mal sem perdão, o mal de Amar.”
Dudu Oliveira.
XV
Confronto
Bateu Amor à porta da Loucura.
“Deixa-me entrar - pediu - sou teu irmão.
Só tu me limparás da lama escura
a que me conduziu minha paixão.”
A Loucura desdenha recebê-lo,
sabendo quanto Amor vive de engano,
mas estarrece de surpresa ao vê-lo,
de humano que era, assim tão inumano.
E exclama: "Entra correndo, o pouso é teu.
Mais que ninguém mereces habitar
minha casa infernal, feita de breu,
enquanto me retiro, sem destino,
pois não sei de mais triste desatino
que este mal sem perdão, o mal de amar."
Carlos Drummond de Andrade.