Paraíso perdido
 
Minha mãe mudou os móveis de lugar.
Coisas de mãe.
Coisas de quem está querendo mudanças,
outras.
Mas ainda não se deu conta.
Ou não tem coragem.
Ou os dois.
 
Minha mãe mudou os móveis
do meu quarto de lugar.
Desfez a arrumação que me deixava feliz.
Coisas de mãe.
 
Tirou meus livros de perto de mim,
mas livro não se importa.
No canto em que o deixamos, fica.
Não reclama.
Faz parte da natureza do livro saber esperar.
Faz parte da sua natureza uma dormência,
eterna...
Está no DNA livresco esta dormência.
Recebe na hora da impressão,
ou da encadernação.
Ou os dois.
E fica sendo livro.
 
Desfez o lugar em que a cachorra dormia.
Dormia feliz.
Mas cachorro se importa.
Agora fica andando pela noite
e pela casa,
chorando.
Sem entender coisa alguma.
 
Na intersecção das dormências,
ela dormia bem.
A dos livros indiferentes apoiados na prateleira.
A da dona apoiada no travesseiro,
mas não indiferente.
Sonhante.
 
A cachorra, ao contrário dos livros, não consegue
apenas ficar onde é deixada
e não reclamar.
Ela procura, chorosa, por um lugar.
Uma determinada região,
um trapézio antes formado
pela estante de livros que esperam,
a cama daquela que se apresentou quando o dono desapareceu e
a poltrona.
Lugar da leitura.
Lugar de bagunça.
Lugar de se escrever, pensar
e até esperar.
Ela tem razão de impacientar-se.
Perdeu um lugar precioso.
Um trapézio energético,
energizante e tranquilizador.
De boas expectativas.
 
Agora,
sobre aquela região
está só a bunda pesada da poltrona.
Acho que bunda pesada de poltrona,
dormente que também é,
não sonha.
Só pesa.
 
Coisas de mãe.