O QUE É SAUDADE

Saudade é um cheiro fugido, um afago arredio,

uma fronha imaculada, um bilhete sem nada escrito,

um tango repetindo num disco arranhado,

um passado querendo desvirginar os musgos que o tempo convocou.

Uma senzala sem trégua, nem porta de saída,

vozes berrando sem parar ao pé do ouvido,

câimbras se entorpecendo ao pé do altar,

lamas se desnudando nas curvas de um corpo qualquer,

de um copo qualquer.

Saudade é dissecar as vértebras dos desejos que pediam apenas um teco de pão,

é ser capaz de domar os exús que esculpimos com mantras de ninguém,

é desafinar no último acorde antes de cairem todas as trincheiras e

falanges,

é tomar banho e o cheiro fétido voltar com força redobrada,

com força redobrada.

É jogar o melhor gozo pelo ralo entupido da dor,

é ser farsante ao ponto de virar a mesa, blefando com maestria,

é rasgar o peito e deixar escorrer todo o suor que um dia resgatamos juntos,

é se ver manco quando chegar a hora de ir pra guerra. E querer ir assim mesmo.

Saudade são os requebros sonolentos de um cálice ainda por nascer,

é o relógio indo pra trás, a comida estragando, as ideias se remoendo feito barata tonta,

é pousar a mão num recanto de saúvas e gargalhar até morrer.

Saudade é se arrrumar pra festa e ir dormir,

é falar o que não tem nexo, sem endereço, nem ponto final,

é ser capaz de correr até que a morte peça perdão,

é ser capaz de sofrer até Deus falar não.

É uma quermesse de zumbis loucos e velhos moribundos em êxtase juvenil,

é se perceber mijando na própria carne, feito néctar que veio de longe para aplacar essa fantasia,

é se desculpar pelos erros, golpes, truques, alçapões e cadalfalsos,

é se desfraldar se rasgando inteiro com o lamento mais indisfarçável da fé.

Saudade é despertar o filho que morreu e estirado está naquele caixão no meio da sala,

é forçar a porta, xingar os pássaros, amaldiçoar o nascer do dia com garra e tresloucada paixão,

é desparafusar o próprio cérebro, deixando a cabeça cair e rolar no chão até o bueiro mais próximo.

Saudade é nunca mais respirar e mandar pro inferno todos os faraós que estiverem cravados no seu uniforme de oficial,

é entorpecer qualquer sonho que ousar sugar seus dias,

é fazer uma autópsia na gente mesmo quando tudo parecer que ficará bem.

Saudade é fazer uma autópsia na gente mesmo quando tudo parecer que ficará bem.